Cromeleque dos Danados

21 abril 2024

A fuga ou a génese de um eco cosmológico

A fuga ou a génese de um eco cosmológico













Se num momento o tempo parasse

sabias que nos moldes

onde me encontro

haveria um espasmo

um big bang inebriante

planetas dispersos na face


E nesse espasmo um universo

nessa face oculta esferas rochosas

capa dura ad astra

capa mole celeste

abertura ao abismo


- Eduardo Cardoso,

em Serpente de Pedra. 



Okapi

Às tantas estávamos na sala da senhoria - sempre no cuidado para ela não entrar de supetão - quando o meu amigo se apressou a tirar uma folha A4 com um texto imprimido para entregar a um professor. O João estava como que entregue aos bichos: o texto mais ou menos resumido rezava a sua insatisfação para com a matéria leccionada. Posto isto, estirei uma folha do caderno onde eu próprio escrevi uma novena. 
Bom dia pessoas que adoram os abraços
Ó meu deus, os abraços! Os abraços fraternos entre os amigos da velha cepa, abraços mesmo onde a comicidade. Enfim, abraços. Mesmo aquele abraço prenhe de amor nos braços descarnados da velha mãe, que no fim tem o sentido claro de unção; um abraço que vem do ar misticamente para resolver um velho mal-entendido. Um qualquer abraço basta para nos sentirmos achados.

Aqueles mal se contiveram. Pareciam acossados depois de provar um vinho carrascão. Aliás, choravam de tanto rir.

Tinha sido uma noite improvável a escrever poemas e lá para fim qualquer coisa sobre abraços. Não faltava o poema sui generis de uma noite de amor fogoso com uma mulher. Ou como o título «Portas a Bater, Não» os fez saltar de riso. Às tantas davam largas ao mais alto atrevimento. 

[...]

O sol desceu para dar lugar à noite de regressos e embarques através das luzes dos comboios que projectavam ao largo. Estávamos diante do velho gira-discos, tentando queimar tempo a ouvir as bandas que tanto gostávamos. Neste somenos, sentimos um cheiro a queimado. Acontece que poupara um tempo antes de sair para engomar uma t-shirt. Escusado será dizer que eles peneiravam com a situação. Era apenas uma t-shirt que convinha ser passada a ferro. Bem, o ferro de engomar estava a queimar o tecido do sofá. Resumindo, o sofá foi mandado arranjar no dia seguinte num estofador. E para completo assombro da senhoria, não havia sofá. Nada. Rigorosamente nada. Apenas o televisor e uma estante. Com o susto, soltou um grito de dor. 


Bacon

Dia primaveril; estávamos em Aveiro; eu e o meu amigo resolvemos ir passar a tarde ao meu apartamento nas Barrocas. «Bem, espero que a senhoria não faça nenhum reparo.» A senhoria era generosa, pois que, pelo preço da estadia de um quarto, me ofereceu ao cuidado todo o apartamento; não havia portanto aquele rebuliço muito próprio dos estudantes sob o mesmo tecto. No caminho para casa, através da paliçada de uma obra, ficamos diante do cartaz da retrospectiva de Francis Bacon em Serralves. «Epá... Um cartaz do Francis Bacon. «Tem cuidado - disse o meu amigo.» Fiz os possíveis para não rasgar o papel grosso devido à cola incrustada mas, ao cabo de uma faxina meticulosa, enrolei o cartaz e abalamos. «Bela porcaria, vamos embora» Já em casa, coloquei o cartaz na parede da cozinha bem junto à janela por forma que os transeuntes que passassem em baixo, o vislumbrassem. O papel estava ainda um pouco grudado de cola, pelo que aderiu facilmente ao azulejo. «Achas que está bem assim? «Sim; porque não? «Bem, desejaria que os transeuntes o pudessem ver lá em baixo; achas que é possível? «Não sei - respondeu colocando uma mexa de cabelo atrás da orelha. Já no exterior, seguimos pelo passeio do qual se avistava a janela da cozinha. O cartaz estava parcialmente visível. «Foda-se, não se vê completamente. O meu amigo estava a sentir-se excluído devido a um cartaz roubado numa paliçada; e eu, um pouco mais desesperado que o normal, procurava avistá-lo no alto da janela. «Estás mesmo afectado; deixa lá isso. «Não achas que está giro assim? - disse, colocando a mão em pala. «Ora bolas; acho que sim... «Não é todos os dias que um gajo passa diante de uma janela e se depara com um cartaz de um neo-expressionista, percebes? «Hoje falaste em neo-expressionismo todo o dia. «Poupa-me.


20 abril 2024

Nero

Já vos contei a história de Nero? 

Certa vez acompanhei Nero, o pastor alemão do meu avô, para um espaço esconso. Que onírico, transcorridos estes anos. 

Nós éramos muito amigos, mas desde então ele guardou uma espécie de rancor por mim - muito devido ao facto de ser neto e menino bonito do avô. Nesse dia apareci no tugúrio onde os empregados do meu avô se abasteciam - onde o meu avô, sendo mestre de obra, era o responsável - apareci, dizia, e houve um grande aparato, pois o meu ombro jorrava sangue depois de ter subido a uma cerca onde Nero me tentou abocanhar. Não abocanhou, é certo, nem tão pouco o sangue jorrou, mas valeu o susto, tendo sido acompanhado ao hospital. Mais onírico que isso era o que se constava na época: que um dos empregados do meu avô era hermafrodita.


19 abril 2024

Plight

Já vi uma obra do grande Joseph Beuys no Centre Pompidou, The Plight. Foi aquando da exposição La Révolution Surréaliste. Andávamos a peneirar nos corredores, quando nos deparamos com uma porta. «Olha uma porta». Lembro-me das paredes estarem revestidas de feltro e no centro da sala um piano encerado. Eu e o meu amigo estávamos absortos porque deparamo-nos inadvertidamente com aquela sala, através do vão da porta que parecia ter sido ali colocada sem finalidade. Tratamos de tirar algumas fotos através da máquina descartável (sim, estávamos em 2002), mas neste somenos surgiu um contínuo que nos repreendeu. Divertido.




Turbo Lento

Estava um dia de verão abrasador com sol a estalar na psique quando Joaquim, ao transpor a porta de entrada do prédio se deparou com pessoas nuas praticando um sexo escaldante nos sítios mais improváveis. «Que se passa? - pensou - Que mefistofélico, meu Deus!» Ao passar o arco que leva ao centro da vila, deparou-se com um caos; não apenas o sol estalava de encontro aos vidros das janelas cimeiras dos prédios decrépitos como todos estavam nus, num apoteótico descalabro de corpos expostos praticando um sexo desgovernado. «Meu Deus! Ó velha - bradou ele para uma sexagenária replicando num menoscabo, nua como um velho papel enxuto - Que se passa com esta gente?» A velha passou sem ao menos pronunciar uma palavra. Joaquim apenas viu aquelas velhas nádegas esquálidas como duas passas. Apartou-se de um homem entrado nos anos, um velho vizinho que o cumprimentava todas as manhãs, e ao colocar a questão premente para aquela apoteose da carne, nada disse; limitou-se a passar ao largo sem uma única palavra, afagando a parte podenda como um velho espectro que vence a canícula. Pela cidade a eito o mesmo cenário; mesmo as catraias, nuas e desalmadas num recreio próprio - mesmo a garota com maçãs do rosto pálido, das maçãs hirsutas, aflorando as mãos nos seios para os acariciar. No talho praticava-se um sexo mais desenfreado; mulheres metidas na idade dançando com garrafas em riste sobre o ventre capitoso dos homens em cenas de sexo garrido. Os carros sucediam com urros de garridas com os seios frondosos expostos. Joaquim tropeçou após o deslumbramento... Ficara diante de um velho sem queixadas. O seu corpo era verde e torturante; no entanto, sorria desnastrado, com um único dente à porfia e um rádio portátil ouvindo um Depois do Adeus que procurava acompanhar lastimosamente. A pélvica flácida recolhia-se entre um ermo de pelos. De tão assombroso, avermelhou-se diante dos olhos de Joaquim que se debatia ainda no chão. Às tantas um velho pôs-se a acariciar num banco do jardim; a glande estava rubra, expelindo a seiva estarrecidamente numa litania. Mulheres com seios flácidos e gritantes tocavam-se com animosidade nas vaginas. Joaquim abalou sem olhar para trás, os céus avermelharam-se. Os gemidos mais pungentes das mulheres soçobravam das janelas entreabertas; urros de homens consolados, ébrios do sexo turbulento. Numa janela cimeira atiravam para os corvos imprevidente.

O senhor proeminente e soturno

Os globos de luz dos candeeiros incidiam numa forte impressão muito devido a um aguaceiro algo inconstante e vento sinuoso. A prostituta mantinha-se junto a um pequeno toldo abrigada do vendaval. Ampla das ancas e corpo desenxabido e trôpego, a criatura lá permanecia colocando a perna grossa e inestética traçada na parede. Neste somenos, surge um homem proeminente e soturno, munido de chapéu de chuva. Na realidade, a abordagem parecia ter sido planeada; ao aproximar-se, retirou o chapéu que estirou junto ao peito: «Boa noite.» A prostituta sorriu: «Que deseja, avozinho? Um par de luvas?»
- Podes tratar-me por avozinho, eu não me importo. Apenas desejaria que me acompanhasses aos meus aposentos.
- Onde são os teus “aposentos” – escarneceu com um esgar, expelindo aquele fumo estanque de cheiros nauseantes. – E antes de mais quero um sinal, estás a ver? Um adiantamento.

- Aliás, aqui o tens. – O homem proeminente e soturno estendeu uma nota de elevado valor que muito surpreendeu a prostituta. O seu corpo enxuto ainda mais perdeu o vigor. 
- Vem comigo, verás que não te arrependerás.
Nos aposentos do homem proeminente e soturno reinava a mais asséptica arrumação. Tudo estava ampla e tenuemente refundido por uma luz sacramental; e o perfume do incenso tudo doirava em redor.
- Que belos aposentos, avozinho.
- Estes aposentos não são meus, são do meu primo; ele está em viagem pelo leste da Europa: deixou esta casa a minha responsabilidade.
- É este senhor? – perguntou a prostituta para um enorme retrato de um senhor em tudo semelhante ao homem proeminente e soturno. – É tal qual o senhor: não há dúvida que são primos.
- Anda, p*ta – ameaçou o homem proeminente e soturno abruptamente -, mostra as tuas entranhas; quero ver as tuas entranhas! - E de tanto esgaravatar, a carne da prostituta principiou a romper em sangue. O acto fora tão abundante e violento, tão desconcertante, que a carne saltou da entranha e da gordura, que gotejava nas suas mãos fervilhantes. Um sangue espesso jorrou em catadupa contra o retrato. Enterrou o focinho na víscera; uivou em ufania escarlate. Sim, ele riu; e quando riu sentiu que o coração da vítima pulsava; e quando sentiu que o coração da vítima pulsava, o homem proeminente e soturno saltou de alegria (...)

A fuga ou a génese de um eco cosmológico

A fuga ou a génese de um eco cosmológico Se num momento o tempo parasse sabias que nos moldes onde me encontro haveria um espasmo um big ban...