Cromeleque dos Danados: setembro 2016

06 setembro 2016

Sinistro

Dedicado a Ana Cristina

Há cerca de uma semana acordei com uma pontada de dor no pescoço, um impenitente torcicolo; queixei-me todo o dia, rogando pragas a tudo. Dois dias depois o foco de dor ainda perdurava; sentia-me deveras angustiado; como se não bastasse, ocorreu-me pensar se não haveria penhascos sobre mim, tal são os dias de depressão – porque eu tenho um medo de morte ao penhascos sobre a cabeça, nomeadamente se eles são ameaçadoramente grandes e pontiagudos. Decidi portanto que nessa tarde me iria deitar na cama e descansar um pouco da atribulação que fora essa semana; eu já não via nem ouvia coisíssima nenhuma à minha volta; foi como uma poalha de dor que me toldou o espírito. Mais tarde vim a saber que o meu cunhado estivera no hospital à conta de um mau jeito nas costas, pensando para mim se também eu não teria feito melhor consultar um médico; mas não, muito provavelmente iria ficar horas a fio com uma pulseira com prioridade mínima pelos corredores dos hospitais. «Isso não é nada, rapaz – disse o meu pai suspirando. – Já se sabe como é a essa tua hipocondria: queixas-te por tudo e por nada. De tal forma que essa dor é uma coisa muito pequena. «Brinca! – asseverei eu. – E dá graças a deus que penhascos do tamanho de prédios inteiros não te caiam em cima da moleirinha. «Hahaha – riu o meu pai com um gritinho – isso é apenas um torcicolo, nada mais!» De maneira que fui deitar-me para me restabelecer de uma dor que agora atingia vários pontos na zona das costas. Eu estava mais morto que vivo. Deixei-me cobrir com um edredão. Efetivamente um soninho brando apossou-se de mim. Passei pelas brasas, e aposto que no meu rosto se vislumbraria um sorriso de satisfação. Quando, neste somenos, de forma absolutamente inacreditável e picaresca, um pardal me ataca e corrói a bochecha da cara, num sonho sinistro e doentio. A ave parecia apossada de horror bárbaro e atroz; desferia bicadas incessantes, delapidando a minha carne. As minhas mãos tentavam em vão proteger o meu rosto conspurcado pelo bico diabólico. Acordei comovido, num pequeno gritinho encandecido. Mais tarde, a Ana perguntou-me se o bico era amarelo. Nesse caso seria um melro, certo? Tratava-se de um pardal vulgar. Não ganhei para o susto. «Não digas mais nada» - disse o meu cunhado quando voltou do Hospital.

05 setembro 2016

Homem valoroso

Não venhas com tesouras, Facebook. Aqui as divergências é comigo.

 «Sim, meu amigo, acabo de verificar com o martelo terapeutico que o seu joelho reage de forma perfeitamente regular. Mas é de uma constância tão frequente que eu próprio, médico especialista, não encontro palavras. Estou atónito.»

03 setembro 2016

Imperialzinha

Olá, ontem à noite saí para beber uma imperial - eu estava literalmente crispado, atolado de frustrações; estava desejoso de emborcar uns copos para atear um fósforo à minha ansiedade. Saí pois por volta das onze da noite e entrei numa garagem onde pulula a raia serôdia e os salafrários mais ébrios, gente sem o mínimo de civilidade a correr nas veias - mas nem por isso deixei de entrar e pedir o meu copo. Entretanto, vem na minha direcção um rapaz novo acompanhado por uma senhora de idade de braços descarnados, por certo a mãe retrógrada e pega, cujo filho prematuro ainda não aprendeu, senão pelas pancadas sucessivas na cabeça, os revezes subliminares e tortuosos que a vida guarda... Havia entre eles uma franca antipatia, e no meio disto tudo uma dicotomia perversa entre duas gerações. Lembrei-me da minha mãe, que eu amo. Pelos vistos entraram num automóvel; o rapaz fez tenção de ligar o auto-rádio e aquilo estalou à nossa volta numa torrente de ruído e percussões de música tecno. Nesse mesmo instante a mãe retrógrada e pega assumiu um ar desgovernado, numa reprimenda sem precedente. A música cessou no mesmo instante. Eu sei, rapaz, desejarias uma liberdade mais consentânea; mas porque não protestas, homem? Por que és um bicho-de-contas com dois dedos de testa e só guardas para ti o que conviria mutuamente. Tens medo da tua mãe? Tens medo de abordar assuntos que ela não compreenderia sem o teu enérgico assentimento? Entrei na garagem. «Imperialzinha, não é? - anuiu o empregado do balcão.

01 setembro 2016

Klinkerhoffen

Dedica a João da Fonseca.

O sol emergia a carruagem com a sua luz hialina e agreste. Por momentos um raio estalou de encontro as vidraças e as cores dos planos exteriores se descobriram de um verde temível. Ia a caminho do Porto; estava apenas eu, tentando recriar uns desenhos no caderno, e alguns passageiros aparentemente distantes e fechados sobre si mesmo, ora velhas septuagenárias dormitanto com a cabeça tombada. Ali a um canto recôndito, um tolo, algum velho alcoólico demente, recostava a cabeça junto à janela, e sorria num enleio medonho. Em Nine, constato que uns militares se preparam para tomar a carruagem nos seus modos devassos. Pouca sorte para o tolo, que no entanto mostrava um sorriso benevolente e sádico. «Quem és tu? - bradou avaro um dos compinchas. - És mesmo tolo! Olha faz a continência. «Ele não faz a continência, tem um parafuso a menos.» Entretanto o mais velho simulou o coito directamente atrás do tolo, e ria provocadoramente, para completa pândega dos compinchas. O tolo ainda mais sorria benevolente e desnastrado. «Faz a continência, maluco!» Então o tolo colocou a mão sobre a cabeça numa postura deveras comovente, mostrando um sorriso negro e mudo de cadafalso. «Hahahah! - sorriram os pândegos - És mesmo maluco, não há dúvida.» O mais velho todavia foi mais consentâneo: «Olha faz a continência comigo - fazendo um piparote com a bota. - Hahahah!» Mas o tolo disse qualquer coisa num rastulhar da voz: «Bate-me na cara - mostrando a face da cara onde batia com a palma da mão. - Bate-me na cara.»

A fuga ou a génese de um eco cosmológico

A fuga ou a génese de um eco cosmológico Se num momento o tempo parasse sabias que nos moldes onde me encontro haveria um espasmo um big ban...