Cromeleque dos Danados: novembro 2016

28 novembro 2016

O Perú de Mefistófeles

Dedicado a Purita

O senhor Mação vinha pela vereda vicinal sob a sombra frugal dos plátanos quando viu a octagenária Libânia estugando muito o passo. Trazia um grande saco de juta pela mão. Apesar da desenvoltura da octagenária Libánia, o senhor Mação não pôde deixar de intervir: «Libânia - exclamou ao longe -, estás mais apressada que um carapau de corrida. Pareces uma bailarina a executar um entrechat. «É verdade, estou com pressa - respondeu. - Tenho um assunto a tratar com o merceeiro. «Qual assunto? «Este assunto - asseverou a velha indicando o saco pesado. Algo saracoteava no saco de juta da octagenária Libânia. «É um peru - atirou a velha -; um peru de mefistófeles! «Que se passa com o animal? «Sabes o quão adoro gatos, não sabes? Pois bem, o bicho atira-se à gataria de tal forma que o próprio andor cai de queixo; é um autêntico demónio. «Não tens onde prender o bicho? «Sim, é claro que tenho onde prender o bicho. A minha armação é toda executada em madeira boa; mas acontece que o peru repenica os arames cheio de uma raiva irreprimível; assim: «Shuck! Shuck! Shuck! «Puxa, ele consegue escapar? - pergunta um senhor Mação deslumbrado. «É como eu te digo: ele é o peru do mefistófeles. Depois amola os gatos. Lá em casa é uma gritaria. Olha! - espantou-se muito a velha octagenária neste somenos - Conseguiu fugir pelo saco!»

25 novembro 2016

Ode To Joy

O Facebook tem um aspecto estranho: se uma pessoa escreve um pensamento, avulso que seja, de um dia para o outro torna-se absolutamente oco, como que atirado para o ar, breve e transitório, outras vezes idiossincrático mesmo. Pode parecer que estou um pouco à margem da actualidade mas acontece que tenho estado mais vezes no twitter, e é por essa razão que o meu mural está mais deserto (e descartável) que o costume. Tenho me deparado com algumas passagens no arquivo e isso torna-me permeável. Apenas desejo que sejam o mais tolerante. Obrigado, simpatia a vossa...

19 novembro 2016

O Recreio dos Comuns

Na aldeia de Serralheiros algo fora do habitual aconteceu num sábado bem pela tardinha. Se o vosso narrador pudesse pintar com cores verdadeiras a peripécia invulgar que teve lugar na estrada de posta junto ao principal pelourinho da aldeia, certamente que esta história que vou contar seguidamente vos faria sorrir. Se fosse possível pintar aqueles homens, ora robustos como o saco da farinha, ora os velhos lavradores munidos de cajados, com uma expressão de estático regozijo, mais uma catrefada de caçadores empedernidos com espingardas a tiracolo; o trigo seco e aparentemente sem vida como serapilheira ao largo da estrada, sem faltar um cão de pelo sebento e encrespado que se esfalfa de um lado ao outro nas suas pernas esquivas derredor do Mestre - como se dizia, se o vosso narrador tivesse o cinzel próprio para descrever com arte a peripécia que naquele sábado quente teve evento, certamente que a minha arte seria outra. Mas como o vosso narrador não tem o cinzel nem outro instrumento próprio que dignifique o homem que tem pela arte o seu único prazer, direi que este sábado não era um sábado como outro qualquer. Este sábado era dia de caçar gambozinos. O leitor por ventura está à vontade e tem para isso uma vontade quase inexplicável, como que se munido por uma mola invisível, de se rir a bandeiras despregadas, mas também o Mestre compreende que esta situação é deveras hilariante, tanto é que vem três metro à frente dos homens da aldeia com um sorriso rasgado nas ventas que explica efectivamente que os gambozinos não existem e que portanto viemos caçá-los porque na realidade não os vamos encontrar. «Sai do caminho, Estrela - disse o Mestre para uma mulher metida nos anos descendo a ladeira com um vagar. - Ainda espantas algum gambozino, mulher!» O senhor Almocreve também está presente e assopra num apito para nomeadamente cativar os gambozinos. Portanto, está em liberdade de apitar como bem entender, porque nunca na sua vida jamais pôde ver ou ouvir um gambozino. «Não posso deixar de rir; vocês carroceiros tem muita lábia - diz Estrela - mas ide, ide espantar os gambozinos. Não sou capaz de reprimir a vontade de rir, lole.» «Poupa-me, Estrela.» Alguns homens deixam-se estar postados com um olhar vago na consciência; a conversa ali varia substancialmente de assunto, «Porque de facto não sabemos quem é o pai da criança» e quejando; e o próprio Mestre, de sua mão grande como uma panela bale que se ataviem pois que é bem provável que o gambozino saia entre as ramagens como um lobo com fome. Os homens riem-se e até param para conversar, alguns apenas para descansar os braços na barriga, que serve ao mesmo tempo de depósito e prateleira. Porém, uma névoa abateu-se sobre o acontecimento, mas saber que espécie de névoa é essa, nem o vosso narrador pode dizer. Digamos que o aspecto da brincadeira teve lugar a outro tema diverso. O Mestre, como se coçasse a ilharga e não houvesse parcimónia para brincadeiras sobre a existência de gambozinos, entrou na casa de pasto Casimiro...

11 novembro 2016

Inspector Hermolenko

Os inspectores da polícia verificavam os últimos vestígios ao redor da chaparro onde ocorrera um enforcamento. Apontavam no bloco de papel aquele último indício, deslocavam uma pedra. Olhavam prostrados o grosso ramo onde o homem se inculcara. «Inspector Hermolenko, disse alguma coisa? Pois parece ter ouvido quaisquer palavras proferidas por si...»
- Traz-me pizza.

10 novembro 2016

O Altar: um conto sobrepujado

A sorte de António e José haveria de mudar; talvez eles próprios pudessem pôr cobro a uma vida de obscurantismo, como que entregues a si mesmo, impregnados na vida da lavoura nos arrabaldes deprimidos da cidade onde nenhum homem regrado antes colocara lá os pés. O seu quotidiano a lavrar a terra com charrua, onde o crivo malhava entre os bichos mais improváveis e outros que se desembrulhavam diante dos seus olhos cansados, desde há muito que lhes ocupava o espírito sequioso de uma vida nova. Às tantas açudavam o boi à charrua raquítica pela manhã a eito, com os pés pejados pela maviosa substância da lama soçobrante das poças, ora para enterrar uma ratazana com a pá. Pelo entardecer encharcavam toda a vasta plantação de couve com o jacto misericordioso de água. Às tantas a sua dilecção pelos bólides dava azo para assistir aos grandes e veneráveis campeonatos de Rally. Ali estava um modelo de carroçaria guisando o mato grosso. «Tu bates mal! - gritava António para o condutor na faxina da manobra, lançando-se na emboscada depois do carro derrapar pela brema. - Tu bates mal!... Outras vezes compenetravam-se no poente, onde ao longe se avistava em projecções plásticas: «Web Summit». Compenetravam-se e balbuciavam: «A vida, Costa.»
- Costa.
Certa vez decidiram descer à cidade pela calada; aproveitaram o convite de uma morena com uns lábios protuberantes e engalfinharam-se através de uma porta para um apartamento onde se brindava copos de vinho capitoso. Tratava-se de uma festa particular; o ruído era intenso, não faltava uma sala para encetar uma dança. Em geral as pessoas estavam animadas; agitava-se ali um frenesi de gente nova. Estudantes, muito provavelmente, a julgar pela mesura com que encaravam os amigos. Na cozinha pululava a algaraviada e havia quem fosse sonegar cerveja ao frigorífico. António e José procuraram divertir-se; queriam surripiar as garrafas de vinho... As pessoas estreitavam o semblante para os dois amigos, que emborcavam o vinho soltando golfadas de hilaridade, ora tomando os restos do vinho na manga emporcalhada da camisa. Às tantas José largou-se numa flâmula; o deboche: as catraias não tinham onde cair de incredulidade. Porém, algo o acometeu: «Não devia ter-me largado.» E assim, deprimido até aos olhos, se dirigiu ao amigo: «Não devia ter-me largado no meio destas pessoas.» António apoiava o amigo. «Ouve - exclamou -, vamos ao andar de cima; dizem que ergueram um altar a uma vagina. «A sério? Um altar a uma vagina?» O dois amigos subiram precipitadamente escadas acima. Abriram uma porta, mas para seu grande espanto viram um casal a praticar um sexo escaldante e incrível. «Peço desculpa - atirou António, não contendo o riso, de ébrio. Abriram outra porta. Ali estava: o altar à vagina. «Isto é incrível. Não haja dúvida, é um altar a uma vagina.»
 Diante deles, em todo o seu esplendor, destacava-se uma enorme vulva rosada ladeada por objectos de mil cintilações. Lá em baixo ouviam-se as pessoas em urros cada vez mais intensos, o matraquear de uma gargalhada que implodia de desejo carnal e cerçava num soluço. «Pede um desejo - disse António. «Bem..., acontece que estou a ficar sem vigor físico; permitir-me-á virilidade para o que aprouver? «Agora acende uma velinha à vagina; ela to concederá.» José ateou um pavio e depôs no altar a vela. «Agora vamos. «Sim, é melhor; confesso que esta história da vagina me comoveu. «Comoveu, querido? - ouviu-se uma vozinha angelical vindo directamente da entranha do ícone. «Sim, querida - respondeu José. - Agora até me apanhaste desprevenida... Sua parva.»
- O Trump ganhou as eleições.
- Parva... Olha a minha cara de pré-conceito...

A fuga ou a génese de um eco cosmológico

A fuga ou a génese de um eco cosmológico Se num momento o tempo parasse sabias que nos moldes onde me encontro haveria um espasmo um big ban...