A sorte de António e José haveria de mudar; talvez eles próprios pudessem pôr cobro a uma vida de obscurantismo, como que entregues a si mesmo, impregnados na vida da lavoura nos arrabaldes deprimidos da cidade onde nenhum homem regrado antes colocara lá os pés. O seu quotidiano a lavrar a terra com charrua, onde o crivo malhava entre os bichos mais improváveis e outros que se desembrulhavam diante dos seus olhos cansados, desde há muito que lhes ocupava o espírito sequioso de uma vida nova. Às tantas açudavam o boi à charrua raquítica pela manhã a eito, com os pés pejados pela maviosa substância da lama soçobrante das poças, ora para enterrar uma ratazana com a pá. Pelo entardecer encharcavam toda a vasta plantação de couve com o jacto misericordioso de água. Às tantas a sua dilecção pelos bólides dava azo para assistir aos grandes e veneráveis campeonatos de Rally. Ali estava um modelo de carroçaria guisando o mato grosso. «Tu bates mal! - gritava António para o condutor na faxina da manobra, lançando-se na emboscada depois do carro derrapar pela brema. - Tu bates mal!... Outras vezes compenetravam-se no poente, onde ao longe se avistava em projecções plásticas: «Web Summit». Compenetravam-se e balbuciavam: «A vida, Costa.»
- Costa.
Certa vez decidiram descer à cidade pela calada; aproveitaram o convite de uma morena com uns lábios protuberantes e engalfinharam-se através de uma porta para um apartamento onde se brindava copos de vinho capitoso. Tratava-se de uma festa particular; o ruído era intenso, não faltava uma sala para encetar uma dança. Em geral as pessoas estavam animadas; agitava-se ali um frenesi de gente nova. Estudantes, muito provavelmente, a julgar pela mesura com que encaravam os amigos. Na cozinha pululava a algaraviada e havia quem fosse sonegar cerveja ao frigorífico. António e José procuraram divertir-se; queriam surripiar as garrafas de vinho... As pessoas estreitavam o semblante para os dois amigos, que emborcavam o vinho soltando golfadas de hilaridade, ora tomando os restos do vinho na manga emporcalhada da camisa. Às tantas José largou-se numa flâmula; o deboche: as catraias não tinham onde cair de incredulidade. Porém, algo o acometeu: «Não devia ter-me largado.» E assim, deprimido até aos olhos, se dirigiu ao amigo: «Não devia ter-me largado no meio destas pessoas.» António apoiava o amigo. «Ouve - exclamou -, vamos ao andar de cima; dizem que ergueram um altar a uma vagina. «A sério? Um altar a uma vagina?» O dois amigos subiram precipitadamente escadas acima. Abriram uma porta, mas para seu grande espanto viram um casal a praticar um sexo escaldante e incrível. «Peço desculpa - atirou António, não contendo o riso, de ébrio. Abriram outra porta. Ali estava: o altar à vagina. «Isto é incrível. Não haja dúvida, é um altar a uma vagina.»
Diante deles, em todo o seu esplendor, destacava-se uma enorme vulva rosada ladeada por objectos de mil cintilações. Lá em baixo ouviam-se as pessoas em urros cada vez mais intensos, o matraquear de uma gargalhada que implodia de desejo carnal e cerçava num soluço. «Pede um desejo - disse António. «Bem..., acontece que estou a ficar sem vigor físico; permitir-me-á virilidade para o que aprouver? «Agora acende uma velinha à vagina; ela to concederá.» José ateou um pavio e depôs no altar a vela. «Agora vamos. «Sim, é melhor; confesso que esta história da vagina me comoveu. «Comoveu, querido? - ouviu-se uma vozinha angelical vindo directamente da entranha do ícone. «Sim, querida - respondeu José. - Agora até me apanhaste desprevenida... Sua parva.»
- O Trump ganhou as eleições.
- Parva... Olha a minha cara de pré-conceito...