Cromeleque dos Danados: 2017

24 dezembro 2017

Feliz Natal

Bom dia pessoas. Desejos de um Santo Natal. Não tenham paciência para abrir os presentes, rasgai a todo o comprimento o papel; façam uma cara parva se não é aquilo que desejavam, como quando surpreendi o meu pai com um abraço fraterno; entornai o copo de muito querer rir; sejam o gáudio da velha avó, aquela que ri muito e cujos olhos ternos - a velha sapiência de vos querer bem - já fabricam sonhos. Não sejam mauzinhos para o vosso avô; não façam um desenho de um falo a todo o comprimento da vitualha que ele leva a mal, apesar dos gritos jocosos que cercam o velho e a velha; ou o tio que cospe um diabrete. Amai sobretudo o menino Jesus nas palhas douradas, façam umas cócegas e repenicai uns beijos para que ele esboce um sorriso de bebé. E não batam no carrulo do Pai Natal só porque ele ficou para beber um copo - deixai-o folgar. Um santo Natal. Noite feliz. E poupem-me.


08 dezembro 2017

Parabéns!

Olá, pessoas incríveis. O meu blogue fez 1 ano no passado mês de Agosto e eu nada...

«Cromeleque dos Danados» está de Parabéns. Estamos nisto há 1 ano. É o primeiro blogue sobrevivente depois de várias e ininterruptas diligências no sentido de criar um sítio onde publicar os meus escritos. Ele é «Guerra e Morte». Ele é «Corcel em Fogo». Ele é «Nuvem Brunida». Nunca outro blogue sobreviveu após um ano. Parabéns. Esperamos continuar o bom trabalho.

Boas festas, leitores das minhas histórias encantatórias. Boas alfaces...

1 ano de Cromeleque dos Danados

28 novembro 2017

O senhor Rubistein

Em casa do senhor Rubistein fora preparada uma festa para as crianças; no pequeno jardim interior bramia a placidez do sol. Fora montada uma mesa com o tema e a vitualha própria para os diabretes; e sob a forma de um anho, que estendia a sombra sobre todas as cabeças de pequenos cristos, uma pinhata. «Meninos - principiou a senhora Rubistein numa voz melíflua -, agora vamos tentar quebrar a pinhata. A população de meninos urrou, mas havia quem se deslumbrasse sob aquele sol hialino. O senhor Rubistein sorriu. Neste somenos a porta de entrada é sacudida de forma evasiva. O senhor Rubistein acorreu imediatamente, deparando-se com dois oficiais. «Que significa isto? - perguntou o mais alto ao deparar-se com a situação. «Bem - respondeu o senhor Rubistein sem se perturbar -, eu convidei todos os meninos do bairro para uma festa. «Que espécie de festa - retorquiu o outro oficial. «Nada de especial, apenas uma festa para entreter os mais novos. Os oficiais irromperam pelo jardim; parecia que uma sombra havia assolado por momentos o jardim. As crianças buliram numa interrogação. «Passa-se alguma coisa - perguntou o senhor Rubistein. «Deduzo que sim - ripostou o oficial bramindo um olhar que atingiu o senhor Rubistein no âmago. «Deduz? - procurou perceber num receio. - Sabe, é apenas um jogo. «Também posso jogar? - retorquiu o mais baixo dos oficiais. «Sim, claro - reagiu o senhor Rubistein -, claro. «Eu tenho bastante curiosidade - disse o mais alto -, também posso assestar na pinhata? «Eheheh - sorriu o senhor Rubistein. Neste somenos, os dois oficiais principiaram num jogo divertido em redor da pinhata. Que solenidade, não se continham de tão ébrios no jogo. As crianças estalaram a rir; também elas estavam inebriadas devido ao fascínio da pinhata.

05 novembro 2017

MAU

Esta noite tive um sonho hiper-realista. Sonhei que era perseguido por gatos raivosos... Eu esfalfava, eu trepava; os gatos pareciam cientes. Estava algures numa casa terrivelmente espaçosa sem comunicação para o exterior. Como se não bastasse, a cada momento era correspondido via postal por um ex-colega... 


23 setembro 2017

A Mulher Extremamente Alta

Dedicado a Purita


O senhor Américo estava na senda de um novo compromisso; tinha necessidade de empreender uma vida nova com alguém que o levasse pelo caminho inebriante e fecundo do amor. O senhor Américo vinha pela rua e ao passar diante de um montra constatou que a calça se engalfinhava de forma verdadeiramente indistinta na barriga da perna, e tendo constatado que a calça não tinha sido rigorosamente engomada, pensou em como seria excitante perder-se de amores por uma bela mulher dotada para a lida doméstica e os trabalhos manuais. Imaginava como seria extravagante vestir a toilette de acordo com o princípio e ordem de uma mulherzinha. «Ui, vestir umas calças de ganga da cor do chocolate!» Instalou-se portanto num restaurante acolhedor e pediu o menu. Pelos vistos mandou vir um bacalhau à Narcisa que muito lhe aguçou o apetite. «Ah - o senhor Américo sonhava -, o quão eu daria por enlear a minha mão numa mãozinha redondinha e terna.» Depois de saciado, pediu uma bica e saiu, não sem antes pagar com notas frescas acabadas de sair da máquina automática. «Sabe uma coisa? - disse o senhor Américo ao empregado de mesa com dente à porfia -, fique com esta nota fresca acabada de sair da máquina automática que eu hoje estou um "mãos-largas". Saiu para a rua e decidiu visitar uma senhora bem conhecida, a velha septuagenária Adélia, vadia de condição, analfabeta e doida. «Porque me procura? - perguntou a velha em cabelo na porta entreaberta. «Quero comprar um dos seus passarinhos, mãezinha. «Valha-me Deus, você é um ordinário. «Ordinário? - espantou-se o senhor Américo. «Eu sei perfeitamente o que você deseja! Quer levantar a saia a uma velha mulher. «Olha que esta! - exclamou o senhor Américo -; não haja dúvida: uma pessoa fala de alho e a velha compreende bugalho. Porque haveria eu de querer levantar a saia, velha macaquinha? Sou um homem na flor da idade! «Então diga o que pretende de mim, ora essa! «Não é por ventura a mãezinha que tem aves à venda? Pois bem, desejo comprar um passarinho. «Um passarinho? Que género de passarinho; um papagaio? - disse a velha deslumbrada. «Não, um passarinho pequeno. «Um canário? Isso, isso! Após se estabelecer o contrato, o senhor Américo foi directamente para casa, levando consigo uma gaiola dentro do qual piava um canário.  Pelo caminho surpreendeu-se com algo absolutamente inaudito. Uma mulher extremamente alta vinha na sua direcção, a mulher mais alta que qualquer outra mulher que o senhor Américo, mesmo em sonhos mais extravagantes, jamais vira. «Puxa - disse, apoiando com temeridade a mão na perna muito longa da mulher -, tu és mesmo alta... Consegues ouvir-me aí em cima?» Pelos vistos a mulher extremamente alta disse qualquer coisa imperceptível; pelos vistos conseguia ouvir o senhor Américo perfeitamente e mais claro do que o senhor Américo julgava. «E bates muitas vezes com a cabeça nos arcos de alvenaria? A mulher extremamente alta disse qualquer coisa imperceptível; pelos vistos evitava passar debaixo dos arcos de alvenaria. «Ouve - continuou o senhor Américo colocando a mão em pala -, não é muito habitual usares saia rodada, pois não?» A mulher extremamente alta disse qualquer coisa imperceptível; pelos vistos preferia calças de ganga a uma saia rodada ordinária. «É que assim é mais conveniente, percebes? Vê-se tudo, eheheh!» A mulher extremamente alta disse qualquer coisa imperceptível, colocou uma mexa de cabelo atrás da orelha; pelos vistos isso não era matéria que respeitasse ao senhor Américo. «Já houve alguém que te há cortejado? Olha diz lá. A mulher extremamente alta disse qualquer coisa imperceptível; pelos vistos ainda ninguém havia cortejado ninguém, mas se o senhor Américo estivesse interessado numa relação sem compromissos que ela estaria com certeza livre. «Livre como um passarinho? - exaltou-se o senhor Américo. A mulher extremamente alta pelos vistos anuiu que sim. «Vou é precisar de um escadote para chegar aos teus lábios; tens a certeza? A mulher extremamente alta disse qualquer coisa imperceptível; pelos vistos soltou um travo imprevidente de jocosidade, concluindo que ela mesma iria fazer os possíveis para manter os lábios do senhor Américo bem frescos. «Que excitante! E parece mal que eu te impinja o dinheiro? A mulher extremamente alta disse qualquer coisa imperceptível; pelos vistos se o senhor Américo fosse mauzinho que lhe obrigaria a pintar as unhas dos pés com um rolo de tinta. «Não tinha pensado nisso, minha filha - disse com bonomia o senhor Américo -, realmente só penso em mim. Faz parte do meu carácter. A mulher extremamente alta disse qualquer coisa imperceptível; pelos vistos concluiu que isso se resolveria com uma pinça esterilizada.

22 setembro 2017

Tormento

Certa vez, eu e uns amigos fomos à estreia d' O Pianista no saudoso Oita. Às tantas, quando o Adrian Brody estava a tentar abrir uma lata de pickles com um abre-latas, uma senhora, nos bancos atrás de mim, comentou com o vizinho - e isto tem imensa piada porque ela estava rigorosamente atormentada -: «Ele tem um abre-latas! Ele tem um abre-latas!»

17 setembro 2017

O Génio de Maradona

Estávamos numa aldeia remota de Cuba; no café do senhor Ximenes, dois senhores de meia idade precipitaram-se para o papagaio da casa num estado de humor particularmente entusiástico, pois que o papagaio, para regozijo irreprimível dos velhos, emitia um incessante «Morte ao Fidel, Morte ao Fidel!» O senhor Ximenes, de modo mais irrepreensível que a bota de elástico, afastou os dois senhores e exclamou: «Deixai o Zico respirar ar; pareceis crianças pequenas!» Neste somenos entra pelo vão da porta um senhor pequeno e anafado com um vagar: «Ximenes, o teu papagaio está a dar que falar. Isto de «Morte ao Fidel» já chegou aos ouvidos da polícia. «Tens razão - disse o senhor Ximenes. - Vou procurar pôr cobro a esta situação. Entretanto os dois senhores de meia idade, de costas para os presentes, não ousando sequer ouvir o que se passa em redor, desejosos para compreender o meandro do fenómeno, não se continham de tanto rir. «Epá - bradou o senhor Ximenes numa colerazinha -, é desancar! É desancar! «Hahahah - riram em uníssono os dois companheiros. Depois de os precipitar para o exterior e praguejar como um sapateiro, o senhor Ximenes ficou sozinho no café. Ainda se ouvia a algaraviada daqueles dois. «Tenho que falar com o senhor Padre - pensou para os seus botões -; talvez me possa ajudar. O Padre recebeu o senhor Ximenes na penumbra da sacristia: «O que te preocupa - perguntou. «É o meu papagaio, senhor Padre. O vitupério já corre a aldeia e houve quem me advertisse que a polícia estava ao corrente. «Não te preocupes - respondeu o padre bramindo um olhar hialino -, não há necessidade, percebes? «Quer dizer que o senhor padre me pode ajudar? «Sim, posso. Vê este papagaio - indicou o padre com a mão estendida para uma gaiola resguardada por um pano. - É o Maradona. «Verdade? - espantou-se o senhor Ximenes amparando também ele o ombro do senhor padre. «Fazemos assim: vamos trocar as aves até este assunto passar despercebido. «Muito bem. Na guaripa, o senhor Ximenes viu dois homens fardados entrar pelo vão da porta. Empertigou-se. «Consta-se que o seu papagaio tem qualquer coisa contra o regime - atirou o polícia mais alto. «Não sei - respondeu o senhor Ximenes sorrindo sem vontade. «Ora vejamos - continuou o outro polícia dirigindo-se ao papagaio: - Com que então é «Morte ao Fidel»? E antes que o senhor agente tivesse uma reação de desacato, o Maradona bradou: «Mete-te com os gajos do teu tamanho, pois precisas do dinheiro para comer.»

26 maio 2017

Starblood

Hoje os pardais discutiam entre si assuntos importantes sobre a vida doméstica. Sorri; que assunto impreterível seria esse para se debaterem tão desenfreadamente? No calor da discussão, sobrou um par de namorados que ainda se reprimiam empaticamente. Depois o meu pensamento voltou ao passado, àquela noite reverberativa de verão, quando assistimos ao fenómeno de um meteoro atravessando o céu. Estávamos nos degraus de uma escadaria diante do pórtico lateral no Rossio da Sé; conversávamos alegremente. «Sabes - dizia eu simpaticamente -, pelos vistos Alicante, aquando da chuva, é uma genuína cidade-fantasma «A sério? Onde é Alicante? «A 200 quilómetros a sul de Valência - respondi - quando, neste somenos, reparo que a atenção nos olhos do meu amigo se prendem subitamente com algo directamente atrás de mim. «O que é aquilo? - perguntou. Virei-me exactamente para onde os seus olhos se crispavam de espanto, e num receio brando de verão, vi diante dos meus olhos, percorrendo vagarosamente a esfera celeste, um astro enorme e lindo. Foram escassos segundos apenas, o suficiente para nos arrebatar de quimera. Lá em baixo, junto ao bar, um pequeno círculo de amigos olhava insolitamente o céu. O Francisco resolveu ameaçar outro ponto de observação e correu à minha frente pelas ruas perdidamente; o astro desaparecia caprichoso por detrás das torres sineiras da Catedral. No outro dia, um directo para a televisão; e o exclusivo da imagem gravada em vídeo. Chamei-lhe Starblood. 


23 maio 2017

Não haja dúvida

Estou assim a modos que. Acontece que uns alunos de NTC de Aveiro convidaram-me para uma curta. Aquilo era deveras divertido; tratava-se de gravar uma simples conversa de café entre amigos. Porém, os meus colegas gravaram as nossas vozes à parte. Estão a imaginar o estapafúrdio: a conversa entre amigos era intercalada de vozes de escárnio e mal-dizer que se sobrepunham nos lábios dos intervenientes. Lembro-me que o Cardoso estava incumbido dos desenhos... Lembro-me também que a voz com sotaque do João sobrepunha fielmente os meus lábios. Às tantas o Milk trocou a papelada do enredo (ainda que as frases, avulsas, não se destacassem por nenhuma observação em particular. «Não haja dúvida», dizia uma voz de sacropanta assimilada no SoundForge por cima dos lábios do João. Mais tarde ninguém entre nós compareceu à estreia no ecrã do auditório; eu e um amigo apenas fomos espreitar pela porta entreaberta para ver como seria a reacção: pelos vistos, na plateia riam-se – ainda por cima porque eu era o mais bonito do grupo e porque afinal a voz de João sobrepunha-se aos meus lábios fofos. Foi divertido; no entanto, não sei o paradeiro desse vídeo, pelo que estou assim a modos que.

19 maio 2017

A mente tacanha

Estava à procura de um filme para ver no meu VCR – pelo menos para recriar um sábado à tarde - quando me deparei com o título na etiqueta de uma cassete: «Demónios». Fiquei um pouco estupefacto; que raio poderia ser aquilo? Liguei a tomada do VCR, coloquei a cassete na porta e sentei-me na ponta do sofá, colocando a mim mesmo esta questão: Demónios? A fita principiou a rolar, fez-se estática, o ecrã ficou negro, e quando não foi a minha surpresa, vi uma gravação de um episódio qualquer de umas criaturas em desenho animado. «Que é isto?» O ecrã mostrava um amontoado de cor saturada e seres extraplanetários. As vozes soavam como dentro de uma caverna; e no percurso do vídeo surgiam uns efeitos concêntricos terríveis, de lutas entre titãs. Fiquei perturbado. Questionei-me se não fora eu quem gravara aquele mundo inóspito de criaturas e combustão de cores. «Não pode, eu não era tão endiabrado… Quer dizer, nem se pode dizer que o fosse na realidade... Sim, de facto era um pouco irrequieto. Mas isto? Quem poderia ter gravado uma coisa assim? Porque na realidade não sou tão pacóvio e ignorante como pode parecer. Louvado seja Deus, quem coloca uma etiqueta com o dizer “Demónios”? Só mostra falta de carácter. Ainda é mais perturbador que aquelas criaturas fantásticas. Alguém me emprestou a cassete, tenho a certeza, mas não sei quem. «Que mente tacanha?»


15 maio 2017

A recrudescência do nariz

Estava um dia de sol abrasador; três angolanos decidem fazer uma pausa após uma longa faxina num prédio em construção. «Puxa - diz o mais novo fazendo uma voluta na carapinha -, o calor tolhe... «É assim mesmo - atira o mais alto de peito anguloso e braços tonificados, acrescentando: Nunca ouviste dizer que o calor quando aperta faz crescer o nariz? «Isso é verdade? «É verdade, pois. Conheci um homem que morreu devido à recrudescência do nariz. Saiu de casa numa manhã ensolarada; passou em revista os jornais da região junto a uns bancos com outros cotas, e quando não é a surpresa, o nariz principia a crescer diante dos olhos dele. «Isso diverte-me - principia o angolano mais retinto, emborcando de uma lata de cerveja Cuca -: um cota que vai morrer à porfia devido à recrudescência do nariz....; não haja dúvida. «Puxa - recomeça o mais novo recompondo a voluta na carapinha -, morreu devido à recrudescência do nariz? Acho isso bastante inverosímil. «Foda-se - asseverou o angolano do peito anguloso, atirando com os factos - É verdade! «Sim, é verdade - apoia o angolano mais retinto -, essa história é verosímil. Aposto que a reacção dos cotas foi de completo assombro: ver o nariz do gajo a crescer como uma pera com bicho. «Essa história é do mais estapafúrdio; um gajo não morre devido à recrudescência do nariz; ou morre? «Oi - alardeou o angolano do peito anguloso -, é verdade, dengue! «É verdade, dengue - corroborou o angolano mais retinto emboracando da lata. - É improvável mas possível. Neste somenos, os angolanos ouviram qualquer coisa a ceder: «Que é isso? - perguntaram em uníssono - quando, para espanto do mais novo, uma tábua o atinge de chofre na orelha. «Foda-se, a minha orelha! Tenho um lugar vazio no lugar da orelha! Tenho um lugar vazio no lugar da orelha! «Really? «A sério - exclama o mais novo num carpir -: a minha orelha! It's gone! Epá, por favor, ide procurar a minha orelha. «Dengue, encontrei a tua orelha! - grita lá em baixo o angolano do peito anguloso num ardil. «Foda-se! - exclama dengue. - Não é essa orelha; a minha tem um lápis!

15 abril 2017

Joseph K Sokratis

O senhor Joseph K Sokratis vinha pela rua em trote deveras apressado, tropeçando ostensivamente na calçada, precipitadamente para chegar a uma casa térrea onde residia um conhecido bruxo. Ora, Joseph K Sokratis, tendo chegado ao seu destino, resfolgando diante da referida casa térrea, bateu à porta com fortes pontadas de desespero e choro escarlate. Demorou algum tempo até que alguém viesse atender. Uma figura absolutamente hedionda entreabriu a porta, e Joseph K Sokratis constatou que se tratava do mordomo do conhecido bruxo, um odre corcunda com face macilenta pejada de cravos. Joseph K Sokratis esfregou a massa putrefacta das solas contra o tapete, subiu uns degraus íngremes até ao primeiro piso, amparando as mãos grossas à parede, e deparou-se com o bruxo sentado a uma secretária, perscrutando-o numa expressão peculiar. Na sala destacavam-se outras figuras. Umas velhas, envergando uns trapos negros, cirandavam em redor, arrastando uma longa ladainha, ora num tom muito agudo ora sublimado. Numa cadeira, uma mulher robusta e matriarcal, com um colar de orelhas humanas em redor do pescoço, entrava num êxtase espectral. O senhor Joseph K Sokratis tartamudeou qualquer coisa; o bruxo consentiu sorrir naquela mesma expressão torturante: «Sinto um cheiro nauseabundo desde que o senhor entrou; não terá calcado qualquer coisa pouco decente? «Sim, é provável… «Mas espere, veja a textura da massa decalcada na sola do sapato; isso parece coisa de bode. «Quer dizer que o senhor adivinhou o que me há sucedido? O bruxo sorriu: «Eu nada adivinhei; apenas lhe quis verificar que a massa pegada na sola do sapato é coisa de bode. «Isso é incrível - porque a minha mulher julga que possuí um bode. «O senhor está a querer dizer que possuiu um bode? – perguntou o bruxo enleado. «Não, meu amigo. A minha mulher está é convencida disso. «Mas se a sua esposa está convencida que o senhor possuiu um bode, isso apenas leva a crer que o senhor, de facto, e por qualquer razão altaneira, possuiu um bode. «Está parvo? – baliu Joseph K Sokratis. 
- Então como quer que o ajude? Quer dizer que não se aproveitou do animal? – indagou o bruxo. 
- É claro que não... 
- Mas o que leva a sua esposa a acreditar que possuiu um bode? 
- Eu não sei… Ela entra num estado muito particular de histeria. 
- Verdade? – indagou o bruxo obviamente enleado pela história incrível do nosso Joseph K Sokratis. 
Dirigiu-se portanto a um compartimento contíguo. Voltou com um crânio nas palmas das mãos. 
- Faça-me um favor, senhor Joseph K Sokratis – disse, espargindo umas ramas de fumo brando sobre o crânio –, visualize o bode. 
- Qual bode! – exclamou Joseph K Sokratis já desmedidamente inconsolável. – Valha-me Deus, eu não possuí bode nenhum. 
- Vá, feche os olhos... Procure visualizar o animal.
Pelos vistos o senhor Joseph K Sokratis ficou rendido à subtileza macabra do bruxo: «Estou a imaginar o bode, meu amigo. E parece que tem a marca de uma forja no quadril. E a marca tem a forma de uma inscrição. 
- A marca do mafarrico?! – exclamou o bruxo tropeçando no enlevo da própria revelação – Que diz a inscrição? 
- Vela pela quinta pata do cavalo. Vela por mim. Eu sou Segismundo.

11 março 2017

Petruska

Certa vez vi Petruska, o casamenteiro, a fugir entre a raia miúda; quis alcançá-lo para o abordar, mas ele foi muito astuto e esquivou-se diante dos meus olhos. Isto passou-se. Dias depois, entrei numa taberna; estava a tentar superar um quotidiano atribulado, pelo que decidi cobrar uns soldos por uma refeição campestre. O comboio para o Porto partia às 15h, dentro de duas horas. Entrei portanto na taberna não sem um entusiasmo; havia uma azáfama enorme, trabalhadores da construção civil com apupos, velhas mulas de ventas tacanhas num menoscabo, ora angolanos a soçobrar, entre os quais Mogadíscio (pretinho retinto amarelado num jogo diante do Ferreiros, em que há ocorrido barulho e muitas caneladas); - enorme, enorme a azáfama. Entretanto, sucedeu uma cadência, ouviu-se o atrito de um automóvel e a taberna mergulhou no silêncio. A conversa entre os angolanos amainou. Mogadíscio ainda esperava a refeição. A televisão atirou com os mesmos anúncios de electrodomésticos de quinta ordem. Neste somenos, a gaiata matrafona com seios fartos serviu um prato de barro bem composto a Mogadíscio; incrédulo, mostrou um sorriso estampado no rosto. «É para comer tudo - retribuiu a matrafona, sorrindo. Os restantes sorriram; eu sorri. Tentava agora assoar o nariz com um lenço de papel quando me apercebo de algo ou alguma coisa que avança intercaladamente, sombriamente, através das janelas. «Epá, é o Petruska! - pensei para mim, precipitando-me sobre a matrafona. Sim, ele avançava destemido, precisamente por aquelas vias. «Passa-se alguma coisa? - disse a matrafona. «Haja paciência - atirou Mogadíscio. «Não, não é nada - suspirei, produrando perceber -; vi uma pessoa que eu conheço. O gajo havia escapado entre os meus dedos. Preferia ter agarrado a manga do casaco. Ainda hoje aquela situação soçobra como um mistério.




10 março 2017

O Alentejano

Esta manhã acordei após o Nody miar para eu abrir a porta do quarto, lançando-me aos caídos. Vou contar todavia uma história. Mas esta história não é sobre pedras nem sobre flores, tão pouco sobre o que está à direita do Pai. Vou contar portanto uma história verídica. No Marco de Canaveses, quem vai pelas veredas vicinais do Douro deprimido e no entanto singelo, há uma casa. Essa casa está no alto de um outeiro. Foi nessa casa que Arcimboldo passeou grande parte da sua infância. Arcimboldo recorda a infância sob um manto de estrelas pontilhados e o medo de mistérios abaulados na boca preta dos pinhais. Ó meu deus, o direito de evocar estas sensações! O espilrar do pastor alemão da simpática vizinha nas noites de cadafalso; os passos reais de um ladrão que não está ali... Mas recordar não é uma aventura; Arcimboldo queria ser pequeno outra vez. Certo dia Arcimboldo e o primo Francisco Late estavam a jogar ténis. Arcimboldo não tinha especial habilidade para manejar a raquete, mas os seus olhos, cansados agora, refulgiam de alegria quando manejava o pulso magrinho com destreza. «Vamos tomar banho, homem - dizia o Francisco Late - Faz calor como o raio! Já te contei a história de quando o meu pai açoitou um limoeiro? «Puxa, açoitou um limoeiro? «Sim. No outro dia erguia-se no ar. Esteve inculcado na terra com uma grande preguiça. O meu pai, como quem não quer a coisa, deu uma sarrafada nele. «Oi, a sério?» Nesse dia estavam lá em casa uns primos afastados emigrados em França. Arcimboldo tentou beijar as faces de uma rapariga mas ela só consentiu um apenas. «Está bem - pensava Arcimboldo para os seus botões -, seja um beijinho.» Porém, aconteceu algo que ainda hoje Arcimboldo recorda não sem um sorriso. Nesse ano, ele estava a aprender a nadar; ainda tinha um pouco medo da parte mais profunda da piscina. Todavia, correu cheio de um grande entusiasmo e mergulhou na parte funda. Ó meu Deus, Arcimboldo estava a ver bolhinhas por todo lado; estava a afogar. Foi quando sentiu uns braços fortes a resgatá-lo muito previdentemente da água; tratava-se do velho Quintas, o alentejano musculado que passava lá em casa para tomar uns banhos. Ele tinha salvo a vida de Arcimboldo. No entanto, sob aquele sol árido do Douro ninguém estava em perigo de perder a vida: «Ó tia - dizia alguém -, o Arcimboldo por pouco afogou.» Vicissitudes.


13 fevereiro 2017

Boa noite pessoas

Bom dia pessoas que escapam pela porta dos fundos, que entalam a cabeça nos vãos periclitantes, que tacteiam pelas escadas de serviço onde murcham os lírios em flor; pessoas que perderam o cabelo sob a chuva auspiciosa de verão e trancaram portas a sete-chaves; que fazem o perfeito jogo de pés num embate com seres obstinados e arrumaram um buraco no chão debaixo de um tapete; A essas o mundo e aquele que está à direita do Pai.


A Cabeça Hipnótica

O senhor Virgulino estava atravessado no divã, atirou para o cesto das revistas o suplemento de jornal e pôs-se a contemplar uma caveira postava na mesa redonda. «Que estranhas criaturas somos quando vistas assim» – pensou para si mesmo. Então muniu-se de um lápis e papel e principiou a esboçar o crânio a partir do modelo diante dele. Subitamente, ficou perplexo – alguma coisa o fez paralisar diante da caveira, pelo que se manteve sério e tomado de uma superstição sem par. «É possível que a caveira se manifeste?» Já se tinham passado largos minutos no fascínio da caveira mas nenhuma magia dava azo qualquer revelação. Os olhos do senhor Virgulino intumesceram. Do assombroso, torna-se de azul férreo. Dava impressão que o senhor Virgulino estava possuído pelo espírito infantil, ainda que salutar, no desejo obscuro de tornar visível a manifestação de um objecto inanimado, como quando, diante da Nossa Senhora do Sameiro, em visitas com a família ao monte da Falperra, se mantinha seguro que a senhora acabaria por lhe dirigir um olhar. «E tu, Senhora do Sameiro, dar-me-ias a atenção necessária para virar os olhos para mim?» O senhor Virgulino era bastante supersticioso, tão supersticioso que, diante do espelho rachado da casa de banho fazia todos os esforços para não se ver reflectido. O espelho rachado, inóspito nas manhãs agrestes, ameaçava cada vez mais o seu mundo. Às tantas, e por meio de um singular determinismo, escanhoava com golpes precisos e abalava. De forma que aquele passatempo diante da caveira acabou por lhe convir: quem sabe se aquele sorriso mefistofélico não lhe espantasse o medo supersticioso que mantinha com os astros. Nestes somenos, sentiu como que o seu espírito entorpecido; e mais estranho: que o seu espírito se deslocava pela sala ao ponto de poder ver o seu corpo estendido no sofá; como o seu espírito pairava subtilmente, sem contudo fazer um esforço peremptório para acordar daquela sensação. «Porra, estou a pairar. Que é isto? Será um ocaso da mente?», até porque, em noites de adversidade, o seu espírito se confrangia, onde as sombras se estendem e repassam. Nisto, foi subitamente precipitado contra a caveira; quando o seu espírito recobrou as sensações, viu diante de si alguém deitado no seu divã, de olhos sanguinários directamente sobre si. «Com mil batráquios, Virgulino, parece que trocamos de lugar!» O senhor Virgulino queria protestar, voltar para o seu corpo. Mas não podia protestar, estava enclausurado naquele sorriso malévolo da caveira, onde ele próprio se materializou. E a suposta figura da caveira, tornando-se espírito ali à beira, dançava idiota.


08 fevereiro 2017

A Ceia

Estávamos na cozinha sombria e pejada de penumbra de uma casa térrea. Dois amigos ceavam à luz incerta de uma vela que sobrepujava as paredes com sombras alongadas. Tratava-se de uma casa bem junto ao solo, em que se destaca uma janela chanfrada na fachada, na rua Cruz de Pedra, onde os automóveis se sobrepõe, atravancados, como esteiras de metal pedregoso. Uma casa deveras peculiar, recamada de cal, que ainda hoje provoca no vosso narrador uma espécie de náusea. A rua, toda ela, é um conjunto feio de construções velhas e raquíticas, ruínas e prédios avulsos de dois e três andares remodelados. Quem passa por esta rua, há-de vislumbrar a dita casa a um primeiro alcance, pois que se situa entre as suas vizinhas mais altas como uma pequena anã. Os dois amigos ceavam. Conhecia-os de deambular para aquelas bandas, em modo andrajoso, pálidos de doenças venéreas, com cabelo sujo e eriçado. Às tantas, o mais velho estirou a mão ao meu pai quando passávamos em revista os jornais na vitrina sob a Arcada na tentativa de cravar um cigarro. «Desculpe, não tenho» - Pois que o mais provável era o vício estar entranhado nas suas cabeças raquíticas de combustão e escalpes talhados às três pancadas. Passámos ao largo e dirigímo-nos ao Ferreira Capa para assentar as ideias e tomar um café, na Rua dos Capelistas, sobretudo para sair da atribulação entre choques de hálitos empastados e deslumbres de narizes virulentos. Voltemos à Rua Cruz de Pedra. É noite. Os dois amigos ceavam, portanto. Batatas assadas no forno; manjar propício para afagar um estômago doente. A cozinha, além da luz parca e incerta, estava abatida por uma franja de fumo que soçobrava do forno ainda quente. «Estas batatinhas estão boas, não estão? - disse o mais velho, Augusto. «Sim, estão crestadinhas - respondeu Licínio. «Olha, consegues passar a mão pela vela? - perguntou Augusto. «Não - respondeu Licínio - ainda queimo a mãozinha. «Preferes as batatinhas, não é? Estão boas, não estão? - correspondeu Augusto alegremente com um brilho nos olhos. Após a ceia, Augusto recostou-se nas costas da cadeira. «Vou fumar um cigarro, irmão. Tens fósforos? «Não. «Então apaga a vela, vamos dormir; fumamos amanhã.


A fuga ou a génese de um eco cosmológico

A fuga ou a génese de um eco cosmológico Se num momento o tempo parasse sabias que nos moldes onde me encontro haveria um espasmo um big ban...