Cromeleque dos Danados: fevereiro 2017

13 fevereiro 2017

Boa noite pessoas

Bom dia pessoas que escapam pela porta dos fundos, que entalam a cabeça nos vãos periclitantes, que tacteiam pelas escadas de serviço onde murcham os lírios em flor; pessoas que perderam o cabelo sob a chuva auspiciosa de verão e trancaram portas a sete-chaves; que fazem o perfeito jogo de pés num embate com seres obstinados e arrumaram um buraco no chão debaixo de um tapete; A essas o mundo e aquele que está à direita do Pai.


A Cabeça Hipnótica

O senhor Virgulino estava atravessado no divã, atirou para o cesto das revistas o suplemento de jornal e pôs-se a contemplar uma caveira postava na mesa redonda. «Que estranhas criaturas somos quando vistas assim» – pensou para si mesmo. Então muniu-se de um lápis e papel e principiou a esboçar o crânio a partir do modelo diante dele. Subitamente, ficou perplexo – alguma coisa o fez paralisar diante da caveira, pelo que se manteve sério e tomado de uma superstição sem par. «É possível que a caveira se manifeste?» Já se tinham passado largos minutos no fascínio da caveira mas nenhuma magia dava azo qualquer revelação. Os olhos do senhor Virgulino intumesceram. Do assombroso, torna-se de azul férreo. Dava impressão que o senhor Virgulino estava possuído pelo espírito infantil, ainda que salutar, no desejo obscuro de tornar visível a manifestação de um objecto inanimado, como quando, diante da Nossa Senhora do Sameiro, em visitas com a família ao monte da Falperra, se mantinha seguro que a senhora acabaria por lhe dirigir um olhar. «E tu, Senhora do Sameiro, dar-me-ias a atenção necessária para virar os olhos para mim?» O senhor Virgulino era bastante supersticioso, tão supersticioso que, diante do espelho rachado da casa de banho fazia todos os esforços para não se ver reflectido. O espelho rachado, inóspito nas manhãs agrestes, ameaçava cada vez mais o seu mundo. Às tantas, e por meio de um singular determinismo, escanhoava com golpes precisos e abalava. De forma que aquele passatempo diante da caveira acabou por lhe convir: quem sabe se aquele sorriso mefistofélico não lhe espantasse o medo supersticioso que mantinha com os astros. Nestes somenos, sentiu como que o seu espírito entorpecido; e mais estranho: que o seu espírito se deslocava pela sala ao ponto de poder ver o seu corpo estendido no sofá; como o seu espírito pairava subtilmente, sem contudo fazer um esforço peremptório para acordar daquela sensação. «Porra, estou a pairar. Que é isto? Será um ocaso da mente?», até porque, em noites de adversidade, o seu espírito se confrangia, onde as sombras se estendem e repassam. Nisto, foi subitamente precipitado contra a caveira; quando o seu espírito recobrou as sensações, viu diante de si alguém deitado no seu divã, de olhos sanguinários directamente sobre si. «Com mil batráquios, Virgulino, parece que trocamos de lugar!» O senhor Virgulino queria protestar, voltar para o seu corpo. Mas não podia protestar, estava enclausurado naquele sorriso malévolo da caveira, onde ele próprio se materializou. E a suposta figura da caveira, tornando-se espírito ali à beira, dançava idiota.


08 fevereiro 2017

A Ceia

Estávamos na cozinha sombria e pejada de penumbra de uma casa térrea. Dois amigos ceavam à luz incerta de uma vela que sobrepujava as paredes com sombras alongadas. Tratava-se de uma casa bem junto ao solo, em que se destaca uma janela chanfrada na fachada, na rua Cruz de Pedra, onde os automóveis se sobrepõe, atravancados, como esteiras de metal pedregoso. Uma casa deveras peculiar, recamada de cal, que ainda hoje provoca no vosso narrador uma espécie de náusea. A rua, toda ela, é um conjunto feio de construções velhas e raquíticas, ruínas e prédios avulsos de dois e três andares remodelados. Quem passa por esta rua, há-de vislumbrar a dita casa a um primeiro alcance, pois que se situa entre as suas vizinhas mais altas como uma pequena anã. Os dois amigos ceavam. Conhecia-os de deambular para aquelas bandas, em modo andrajoso, pálidos de doenças venéreas, com cabelo sujo e eriçado. Às tantas, o mais velho estirou a mão ao meu pai quando passávamos em revista os jornais na vitrina sob a Arcada na tentativa de cravar um cigarro. «Desculpe, não tenho» - Pois que o mais provável era o vício estar entranhado nas suas cabeças raquíticas de combustão e escalpes talhados às três pancadas. Passámos ao largo e dirigímo-nos ao Ferreira Capa para assentar as ideias e tomar um café, na Rua dos Capelistas, sobretudo para sair da atribulação entre choques de hálitos empastados e deslumbres de narizes virulentos. Voltemos à Rua Cruz de Pedra. É noite. Os dois amigos ceavam, portanto. Batatas assadas no forno; manjar propício para afagar um estômago doente. A cozinha, além da luz parca e incerta, estava abatida por uma franja de fumo que soçobrava do forno ainda quente. «Estas batatinhas estão boas, não estão? - disse o mais velho, Augusto. «Sim, estão crestadinhas - respondeu Licínio. «Olha, consegues passar a mão pela vela? - perguntou Augusto. «Não - respondeu Licínio - ainda queimo a mãozinha. «Preferes as batatinhas, não é? Estão boas, não estão? - correspondeu Augusto alegremente com um brilho nos olhos. Após a ceia, Augusto recostou-se nas costas da cadeira. «Vou fumar um cigarro, irmão. Tens fósforos? «Não. «Então apaga a vela, vamos dormir; fumamos amanhã.


A fuga ou a génese de um eco cosmológico

A fuga ou a génese de um eco cosmológico Se num momento o tempo parasse sabias que nos moldes onde me encontro haveria um espasmo um big ban...