Cromeleque dos Danados: março 2017

11 março 2017

Petruska

Certa vez vi Petruska, o casamenteiro, a fugir entre a raia miúda; quis alcançá-lo para o abordar, mas ele foi muito astuto e esquivou-se diante dos meus olhos. Isto passou-se. Dias depois, entrei numa taberna; estava a tentar superar um quotidiano atribulado, pelo que decidi cobrar uns soldos por uma refeição campestre. O comboio para o Porto partia às 15h, dentro de duas horas. Entrei portanto na taberna não sem um entusiasmo; havia uma azáfama enorme, trabalhadores da construção civil com apupos, velhas mulas de ventas tacanhas num menoscabo, ora angolanos a soçobrar, entre os quais Mogadíscio (pretinho retinto amarelado num jogo diante do Ferreiros, em que há ocorrido barulho e muitas caneladas); - enorme, enorme a azáfama. Entretanto, sucedeu uma cadência, ouviu-se o atrito de um automóvel e a taberna mergulhou no silêncio. A conversa entre os angolanos amainou. Mogadíscio ainda esperava a refeição. A televisão atirou com os mesmos anúncios de electrodomésticos de quinta ordem. Neste somenos, a gaiata matrafona com seios fartos serviu um prato de barro bem composto a Mogadíscio; incrédulo, mostrou um sorriso estampado no rosto. «É para comer tudo - retribuiu a matrafona, sorrindo. Os restantes sorriram; eu sorri. Tentava agora assoar o nariz com um lenço de papel quando me apercebo de algo ou alguma coisa que avança intercaladamente, sombriamente, através das janelas. «Epá, é o Petruska! - pensei para mim, precipitando-me sobre a matrafona. Sim, ele avançava destemido, precisamente por aquelas vias. «Passa-se alguma coisa? - disse a matrafona. «Haja paciência - atirou Mogadíscio. «Não, não é nada - suspirei, produrando perceber -; vi uma pessoa que eu conheço. O gajo havia escapado entre os meus dedos. Preferia ter agarrado a manga do casaco. Ainda hoje aquela situação soçobra como um mistério.




10 março 2017

O Alentejano

Esta manhã acordei após o Nody miar para eu abrir a porta do quarto, lançando-me aos caídos. Vou contar todavia uma história. Mas esta história não é sobre pedras nem sobre flores, tão pouco sobre o que está à direita do Pai. Vou contar portanto uma história verídica. No Marco de Canaveses, quem vai pelas veredas vicinais do Douro deprimido e no entanto singelo, há uma casa. Essa casa está no alto de um outeiro. Foi nessa casa que Arcimboldo passeou grande parte da sua infância. Arcimboldo recorda a infância sob um manto de estrelas pontilhados e o medo de mistérios abaulados na boca preta dos pinhais. Ó meu deus, o direito de evocar estas sensações! O espilrar do pastor alemão da simpática vizinha nas noites de cadafalso; os passos reais de um ladrão que não está ali... Mas recordar não é uma aventura; Arcimboldo queria ser pequeno outra vez. Certo dia Arcimboldo e o primo Francisco Late estavam a jogar ténis. Arcimboldo não tinha especial habilidade para manejar a raquete, mas os seus olhos, cansados agora, refulgiam de alegria quando manejava o pulso magrinho com destreza. «Vamos tomar banho, homem - dizia o Francisco Late - Faz calor como o raio! Já te contei a história de quando o meu pai açoitou um limoeiro? «Puxa, açoitou um limoeiro? «Sim. No outro dia erguia-se no ar. Esteve inculcado na terra com uma grande preguiça. O meu pai, como quem não quer a coisa, deu uma sarrafada nele. «Oi, a sério?» Nesse dia estavam lá em casa uns primos afastados emigrados em França. Arcimboldo tentou beijar as faces de uma rapariga mas ela só consentiu um apenas. «Está bem - pensava Arcimboldo para os seus botões -, seja um beijinho.» Porém, aconteceu algo que ainda hoje Arcimboldo recorda não sem um sorriso. Nesse ano, ele estava a aprender a nadar; ainda tinha um pouco medo da parte mais profunda da piscina. Todavia, correu cheio de um grande entusiasmo e mergulhou na parte funda. Ó meu Deus, Arcimboldo estava a ver bolhinhas por todo lado; estava a afogar. Foi quando sentiu uns braços fortes a resgatá-lo muito previdentemente da água; tratava-se do velho Quintas, o alentejano musculado que passava lá em casa para tomar uns banhos. Ele tinha salvo a vida de Arcimboldo. No entanto, sob aquele sol árido do Douro ninguém estava em perigo de perder a vida: «Ó tia - dizia alguém -, o Arcimboldo por pouco afogou.» Vicissitudes.


A fuga ou a génese de um eco cosmológico

A fuga ou a génese de um eco cosmológico Se num momento o tempo parasse sabias que nos moldes onde me encontro haveria um espasmo um big ban...