Cromeleque dos Danados: maio 2017

26 maio 2017

Starblood

Hoje os pardais discutiam entre si assuntos importantes sobre a vida doméstica. Sorri; que assunto impreterível seria esse para se debaterem tão desenfreadamente? No calor da discussão, sobrou um par de namorados que ainda se reprimiam empaticamente. Depois o meu pensamento voltou ao passado, àquela noite reverberativa de verão, quando assistimos ao fenómeno de um meteoro atravessando o céu. Estávamos nos degraus de uma escadaria diante do pórtico lateral no Rossio da Sé; conversávamos alegremente. «Sabes - dizia eu simpaticamente -, pelos vistos Alicante, aquando da chuva, é uma genuína cidade-fantasma «A sério? Onde é Alicante? «A 200 quilómetros a sul de Valência - respondi - quando, neste somenos, reparo que a atenção nos olhos do meu amigo se prendem subitamente com algo directamente atrás de mim. «O que é aquilo? - perguntou. Virei-me exactamente para onde os seus olhos se crispavam de espanto, e num receio brando de verão, vi diante dos meus olhos, percorrendo vagarosamente a esfera celeste, um astro enorme e lindo. Foram escassos segundos apenas, o suficiente para nos arrebatar de quimera. Lá em baixo, junto ao bar, um pequeno círculo de amigos olhava insolitamente o céu. O Francisco resolveu ameaçar outro ponto de observação e correu à minha frente pelas ruas perdidamente; o astro desaparecia caprichoso por detrás das torres sineiras da Catedral. No outro dia, um directo para a televisão; e o exclusivo da imagem gravada em vídeo. Chamei-lhe Starblood. 


23 maio 2017

Não haja dúvida

Estou assim a modos que. Acontece que uns alunos de NTC de Aveiro convidaram-me para uma curta. Aquilo era deveras divertido; tratava-se de gravar uma simples conversa de café entre amigos. Porém, os meus colegas gravaram as nossas vozes à parte. Estão a imaginar o estapafúrdio: a conversa entre amigos era intercalada de vozes de escárnio e mal-dizer que se sobrepunham nos lábios dos intervenientes. Lembro-me que o Cardoso estava incumbido dos desenhos... Lembro-me também que a voz com sotaque do João sobrepunha fielmente os meus lábios. Às tantas o Milk trocou a papelada do enredo (ainda que as frases, avulsas, não se destacassem por nenhuma observação em particular. «Não haja dúvida», dizia uma voz de sacropanta assimilada no SoundForge por cima dos lábios do João. Mais tarde ninguém entre nós compareceu à estreia no ecrã do auditório; eu e um amigo apenas fomos espreitar pela porta entreaberta para ver como seria a reacção: pelos vistos, na plateia riam-se – ainda por cima porque eu era o mais bonito do grupo e porque afinal a voz de João sobrepunha-se aos meus lábios fofos. Foi divertido; no entanto, não sei o paradeiro desse vídeo, pelo que estou assim a modos que.

19 maio 2017

A mente tacanha

Estava à procura de um filme para ver no meu VCR – pelo menos para recriar um sábado à tarde - quando me deparei com o título na etiqueta de uma cassete: «Demónios». Fiquei um pouco estupefacto; que raio poderia ser aquilo? Liguei a tomada do VCR, coloquei a cassete na porta e sentei-me na ponta do sofá, colocando a mim mesmo esta questão: Demónios? A fita principiou a rolar, fez-se estática, o ecrã ficou negro, e quando não foi a minha surpresa, vi uma gravação de um episódio qualquer de umas criaturas em desenho animado. «Que é isto?» O ecrã mostrava um amontoado de cor saturada e seres extraplanetários. As vozes soavam como dentro de uma caverna; e no percurso do vídeo surgiam uns efeitos concêntricos terríveis, de lutas entre titãs. Fiquei perturbado. Questionei-me se não fora eu quem gravara aquele mundo inóspito de criaturas e combustão de cores. «Não pode, eu não era tão endiabrado… Quer dizer, nem se pode dizer que o fosse na realidade... Sim, de facto era um pouco irrequieto. Mas isto? Quem poderia ter gravado uma coisa assim? Porque na realidade não sou tão pacóvio e ignorante como pode parecer. Louvado seja Deus, quem coloca uma etiqueta com o dizer “Demónios”? Só mostra falta de carácter. Ainda é mais perturbador que aquelas criaturas fantásticas. Alguém me emprestou a cassete, tenho a certeza, mas não sei quem. «Que mente tacanha?»


15 maio 2017

A recrudescência do nariz

Estava um dia de sol abrasador; três angolanos decidem fazer uma pausa após uma longa faxina num prédio em construção. «Puxa - diz o mais novo fazendo uma voluta na carapinha -, o calor tolhe... «É assim mesmo - atira o mais alto de peito anguloso e braços tonificados, acrescentando: Nunca ouviste dizer que o calor quando aperta faz crescer o nariz? «Isso é verdade? «É verdade, pois. Conheci um homem que morreu devido à recrudescência do nariz. Saiu de casa numa manhã ensolarada; passou em revista os jornais da região junto a uns bancos com outros cotas, e quando não é a surpresa, o nariz principia a crescer diante dos olhos dele. «Isso diverte-me - principia o angolano mais retinto, emborcando de uma lata de cerveja Cuca -: um cota que vai morrer à porfia devido à recrudescência do nariz....; não haja dúvida. «Puxa - recomeça o mais novo recompondo a voluta na carapinha -, morreu devido à recrudescência do nariz? Acho isso bastante inverosímil. «Foda-se - asseverou o angolano do peito anguloso, atirando com os factos - É verdade! «Sim, é verdade - apoia o angolano mais retinto -, essa história é verosímil. Aposto que a reacção dos cotas foi de completo assombro: ver o nariz do gajo a crescer como uma pera com bicho. «Essa história é do mais estapafúrdio; um gajo não morre devido à recrudescência do nariz; ou morre? «Oi - alardeou o angolano do peito anguloso -, é verdade, dengue! «É verdade, dengue - corroborou o angolano mais retinto emboracando da lata. - É improvável mas possível. Neste somenos, os angolanos ouviram qualquer coisa a ceder: «Que é isso? - perguntaram em uníssono - quando, para espanto do mais novo, uma tábua o atinge de chofre na orelha. «Foda-se, a minha orelha! Tenho um lugar vazio no lugar da orelha! Tenho um lugar vazio no lugar da orelha! «Really? «A sério - exclama o mais novo num carpir -: a minha orelha! It's gone! Epá, por favor, ide procurar a minha orelha. «Dengue, encontrei a tua orelha! - grita lá em baixo o angolano do peito anguloso num ardil. «Foda-se! - exclama dengue. - Não é essa orelha; a minha tem um lápis!

A fuga ou a génese de um eco cosmológico

A fuga ou a génese de um eco cosmológico Se num momento o tempo parasse sabias que nos moldes onde me encontro haveria um espasmo um big ban...