Cromeleque dos Danados: A Mulher Extremamente Alta

23 setembro 2017

A Mulher Extremamente Alta

Dedicado a Purita


O senhor Américo estava na senda de um novo compromisso; tinha necessidade de empreender uma vida nova com alguém que o levasse pelo caminho inebriante e fecundo do amor. O senhor Américo vinha pela rua e ao passar diante de um montra constatou que a calça se engalfinhava de forma verdadeiramente indistinta na barriga da perna, e tendo constatado que a calça não tinha sido rigorosamente engomada, pensou em como seria excitante perder-se de amores por uma bela mulher dotada para a lida doméstica e os trabalhos manuais. Imaginava como seria extravagante vestir a toilette de acordo com o princípio e ordem de uma mulherzinha. «Ui, vestir umas calças de ganga da cor do chocolate!» Instalou-se portanto num restaurante acolhedor e pediu o menu. Pelos vistos mandou vir um bacalhau à Narcisa que muito lhe aguçou o apetite. «Ah - o senhor Américo sonhava -, o quão eu daria por enlear a minha mão numa mãozinha redondinha e terna.» Depois de saciado, pediu uma bica e saiu, não sem antes pagar com notas frescas acabadas de sair da máquina automática. «Sabe uma coisa? - disse o senhor Américo ao empregado de mesa com dente à porfia -, fique com esta nota fresca acabada de sair da máquina automática que eu hoje estou um "mãos-largas". Saiu para a rua e decidiu visitar uma senhora bem conhecida, a velha septuagenária Adélia, vadia de condição, analfabeta e doida. «Porque me procura? - perguntou a velha em cabelo na porta entreaberta. «Quero comprar um dos seus passarinhos, mãezinha. «Valha-me Deus, você é um ordinário. «Ordinário? - espantou-se o senhor Américo. «Eu sei perfeitamente o que você deseja! Quer levantar a saia a uma velha mulher. «Olha que esta! - exclamou o senhor Américo -; não haja dúvida: uma pessoa fala de alho e a velha compreende bugalho. Porque haveria eu de querer levantar a saia, velha macaquinha? Sou um homem na flor da idade! «Então diga o que pretende de mim, ora essa! «Não é por ventura a mãezinha que tem aves à venda? Pois bem, desejo comprar um passarinho. «Um passarinho? Que género de passarinho; um papagaio? - disse a velha deslumbrada. «Não, um passarinho pequeno. «Um canário? Isso, isso! Após se estabelecer o contrato, o senhor Américo foi directamente para casa, levando consigo uma gaiola dentro do qual piava um canário.  Pelo caminho surpreendeu-se com algo absolutamente inaudito. Uma mulher extremamente alta vinha na sua direcção, a mulher mais alta que qualquer outra mulher que o senhor Américo, mesmo em sonhos mais extravagantes, jamais vira. «Puxa - disse, apoiando com temeridade a mão na perna muito longa da mulher -, tu és mesmo alta... Consegues ouvir-me aí em cima?» Pelos vistos a mulher extremamente alta disse qualquer coisa imperceptível; pelos vistos conseguia ouvir o senhor Américo perfeitamente e mais claro do que o senhor Américo julgava. «E bates muitas vezes com a cabeça nos arcos de alvenaria? A mulher extremamente alta disse qualquer coisa imperceptível; pelos vistos evitava passar debaixo dos arcos de alvenaria. «Ouve - continuou o senhor Américo colocando a mão em pala -, não é muito habitual usares saia rodada, pois não?» A mulher extremamente alta disse qualquer coisa imperceptível; pelos vistos preferia calças de ganga a uma saia rodada ordinária. «É que assim é mais conveniente, percebes? Vê-se tudo, eheheh!» A mulher extremamente alta disse qualquer coisa imperceptível, colocou uma mexa de cabelo atrás da orelha; pelos vistos isso não era matéria que respeitasse ao senhor Américo. «Já houve alguém que te há cortejado? Olha diz lá. A mulher extremamente alta disse qualquer coisa imperceptível; pelos vistos ainda ninguém havia cortejado ninguém, mas se o senhor Américo estivesse interessado numa relação sem compromissos que ela estaria com certeza livre. «Livre como um passarinho? - exaltou-se o senhor Américo. A mulher extremamente alta pelos vistos anuiu que sim. «Vou é precisar de um escadote para chegar aos teus lábios; tens a certeza? A mulher extremamente alta disse qualquer coisa imperceptível; pelos vistos soltou um travo imprevidente de jocosidade, concluindo que ela mesma iria fazer os possíveis para manter os lábios do senhor Américo bem frescos. «Que excitante! E parece mal que eu te impinja o dinheiro? A mulher extremamente alta disse qualquer coisa imperceptível; pelos vistos se o senhor Américo fosse mauzinho que lhe obrigaria a pintar as unhas dos pés com um rolo de tinta. «Não tinha pensado nisso, minha filha - disse com bonomia o senhor Américo -, realmente só penso em mim. Faz parte do meu carácter. A mulher extremamente alta disse qualquer coisa imperceptível; pelos vistos concluiu que isso se resolveria com uma pinça esterilizada.

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