Duas da madrugada. Os feixes de luz amarelenta dos candeeiros escovam na velha calçada. A velha cidade de Braga respirava a rudeza arquitetónica. Afonso Cadavez teve uma vontade absurda de urinar contra a parede amuralhada da catedral. Nisto, ouviu algures o canto apoplético de um cigano ébrio. «Bem – pensou para si mesmo –, vou urinar aqui mesmo diante desta Santa.» Tratava-se da Nossa Senhora do Leite; por momentos julgou se não estaria a conspurcar o velho ícone com o seu procedimento. Nossa Senhora do Leite sorriu escarninho. Afonso perscrutou-a. «Terei febre?» À sua esquerda surgiu um velho homem de uma compleição algo alquebrada, semblante sério e como que enfaixado numa carapaça. Afonso Cadavez recolheu-se o mais possível contra a parede; entreolhou o homem... mas, seria possível? O homem evaporara-se diante dos olhos; surgira em forma de nuvem no alto do céu e sentou-se na lua. Estaria Afonso Cadavez doente? Nisto o velho homem saltou para o telhado do Governo Civil e dali para o velho solar; escondeu-se atrás de um plátano e aproximou-se vindo daquela direcção, através da rua do Forno. Aquilo só inspirou em Afonso Cadavez um profundo respeito pelo sobrenatural; por pouco não soltou um gemido.
«És o Afonso Cadavez, certo?»
- Sim, é o próprio
- Vi o teu perfil do Facebook.
- Posso? – perguntou com alguma mesura.
- Queres fumar cachimbo, Afonso Cadavez?
- Queira ter a bondade.
Afonso Cadavez ficou de certo modo aparvalhado diante da parede amuralhada, anuindo que sim, sumidamente: era um pouco estranho e até anti-natural a presença daquele velho com perguntas sobre o seu perfil do Facebook. Neste somenos, para seu completo aniquilamento, o velho arrostou-lhe pela gola do casaco.
- Que se passa? – exclamou Afonso no clamor da investida.
- Anda, não é nada. Sem amuos, vá – disse o velho sacudindo o canastro de Afonso. Todavia, Afonso Cadavez tentou soltar-se com um safanão; não tinha certamente um receio tão venal que não pudesse soltar-se das mãos grandes e penugentas de um homem velho. Mas isso constitui um agravo na crise daquele, pois que o seu rosto franziu de forma absolutamente picaresca, tendo assim abocanhado o nariz de Afonso Cadavez. O muco de sangue jorrou na calçada com incrível aparato.
- O meu nariz, homem! – chorou violentamente o jovem rapaz, visivelmente rendido de fortes dores. - Para que precisas do nariz? – gritou o velho; e a sua voz parecia ostensiva e desgovernada.
Afonso arrostou-se no chão.
- Para que precisas do nariz? Aqui – continuou o velho um tanto ressentido de velhas memórias, apontando para uma gárgula que virava o traseiro para norte, aquela mesma gárgula que infligia terror ao salteadores de relicários (Nossa Senhora do Leite sorriu escarninho) – aqui diante de nós está a história de dez séculos de uma velha catedral - e tu vens urinar na parede amuralhada da velha Sé de Braga? Ele bem olhou para mim quando me sentei em cima da lua. Precisei de me sentar na lua. És tu quem me vai impedir?
Afonso Cadavez chorava com ardor. Viu qualquer coisa no chão diante dele; qualquer coisa adunca que o homem cuspiu no chão com veemência. Constatou que se tratava do seu nariz.
- Amigo, é o teu nariz! Que pensas fazer em relação a isso? Isso não vai lá nem com mistura de serrim.
Afonso confrangeu num fragor.
- O meu precioso nariz! Lorpa!
- Lorpa? – disse o velho repousando o olhar em Afonso.
O velho assestou-lhe em cheio com o pé nas costuras. Afonso confrangeu copiosamente.
- Julgas naturalmente que estás em situação de apontar o dedo a qualquer idiota, mas não passas de um lorpa. Ao mínimo contacto com a realidade, comoves-te como o diabo foge da cruz. És lorpa e covarde.
- Não é nada – disse o velho repousando o olhar em Afonso Cadavez. - Tu é que estavas a urinar contra a parede da Sé de Braga. Isso não posso consentir.
Nisto, dois homens acorreram por compadrio do homem.
«Que se passa? - rumorejaram. É para bater?»
Entretanto, ali no Rossio levantou-se um tumulto; pessoas agitavam-se em redor dos lutadores. «Porrada!... Porrada!...» Afonso procurava acertar no rosto da criatura, mas dizer que criatura fosse ao certo, ninguém ainda houvera colocado a questão, exceptuando um padre, ali mesmo, àquela hora, vindo da rua do Alcaide em trote precipitado, que se perturbou ao constatar que uma das gárgulas havia sumido do poiso – gárgula que, desde a sua construção, ali estivera como um simples capitel de alvenaria.
Os papalvos tão pouco se aperceberam que aquilo diante deles, uma escultura assombrosa com dentes caninos afilados na sua boca profunda, qual Barrabás com ventas poeirentas, fosse precisamente algo ou qualquer coisa de outro mundo. «Porra, o jovem não tem nariz»
- Idiotas – berrou Afonso Cadavez. - Arrancou-mo este homem.
Entretanto, os papalvos enviesaram o olhar; questionavam-se. E sussurravam ao ouvido uns dos outros fazendo um sinal à laia de corno.
— Ele é feito de alvenaria, o monstro – berrava agora.
Então, tendo para isso arregaçado as saias do hábito negro, o padre repenicou a orelha arrebitada da gárgula e desapareceu numa esquina refundida. Um velhinho magro como um palito e um boné enfiado pela cara ficou varado:
— Valha-me deus, o padre levou o nosso lutador; com quem vai o rapaz lutar, neste caso?
Após os papalvos se haverem dispersado um pouco tristonhos, o velho de boné enfiado pela cara olhou a esquina escura onde o padre havia desaparecido, e, tendo para isso amparado a mão mariana pejadas de calos e outras indelicadezas seu queixo, acompanhou os outros.
Como então, Afonso Cadavez? Realidade ou mito? Ou uma ambas as coisas. Que é de ti? O teu nariz? Apanha o nariz antes que seja tarde. Nossa Senhora do Leite sorriu escarninho.