Cromeleque dos Danados: 2018

quarta-feira, 2 de maio de 2018

Carência capilar

Há dias entrei numa casa de alcoóis; só depois é que reparei que ao meu lado direito estava um gajo alto com porte ostensivo a beber cálices de bebidas espirituosas. Discorria aluadamente. Carência capilar. Estava em amena cavaqueira com o empregado de balcão. «Você sabe porque a namorada do Hulk se divorciou dele? Porque estava com necessidade de um homem mais maduro.»

Ponto.
Parágrafo.

O empregado riu: «Porque era do Sporting? «Exacto - disse ele sem intenções de defraudar o péssimo mau humor do seu interlocutor.


terça-feira, 24 de abril de 2018

Uma história de violência


Duas da madrugada. Os feixes de luz amarelenta dos candeeiros escovam na velha calçada. A velha cidade de Braga respirava a rudeza arquitetónica. Afonso Cadavez teve uma vontade absurda de urinar contra a parede amuralhada da catedral. Nisto, ouviu algures o canto apoplético de um cigano ébrio. «Bem – pensou para si mesmo –, vou urinar aqui mesmo diante desta Santa.» Tratava-se da Nossa Senhora do Leite; por momentos julgou se não estaria a conspurcar o velho ícone com o seu procedimento. Nossa Senhora do Leite sorriu escarninho. Afonso perscrutou-a. «Terei febre?» À sua esquerda surgiu um velho homem de uma compleição algo alquebrada, semblante sério e como que enfaixado numa carapaça. Afonso Cadavez recolheu-se o mais possível contra a parede; entreolhou o homem... mas, seria possível? O homem evaporara-se diante dos olhos; surgira em forma de nuvem no alto do céu e sentou-se na lua. Estaria Afonso Cadavez doente? Nisto o velho homem saltou para o telhado do Governo Civil e dali para o velho solar; escondeu-se atrás de um plátano e aproximou-se vindo daquela direcção, através da rua do Forno. Aquilo só inspirou em Afonso Cadavez um profundo respeito pelo sobrenatural; por pouco não soltou um gemido. 
 «És o Afonso Cadavez, certo?» 
- Sim, é o próprio 
- Vi o teu perfil do Facebook. 
- Posso? – perguntou com alguma mesura. 
- Queres fumar cachimbo, Afonso Cadavez? 
- Queira ter a bondade. 
Afonso Cadavez ficou de certo modo aparvalhado diante da parede amuralhada, anuindo que sim, sumidamente: era um pouco estranho e até anti-natural a presença daquele velho com perguntas sobre o seu perfil do Facebook. Neste somenos, para seu completo aniquilamento, o velho arrostou-lhe pela gola do casaco. 
- Que se passa? – exclamou Afonso no clamor da investida. 
- Anda, não é nada. Sem amuos, vá – disse o velho sacudindo o canastro de Afonso. Todavia, Afonso Cadavez tentou soltar-se com um safanão; não tinha certamente um receio tão venal que não pudesse soltar-se das mãos grandes e penugentas de um homem velho. Mas isso constitui um agravo na crise daquele, pois que o seu rosto franziu de forma absolutamente picaresca, tendo assim abocanhado o nariz de Afonso Cadavez. O muco de sangue jorrou na calçada com incrível aparato. 
- O meu nariz, homem! – chorou violentamente o jovem rapaz, visivelmente rendido de fortes dores. - Para que precisas do nariz? – gritou o velho; e a sua voz parecia ostensiva e desgovernada. 
Afonso arrostou-se no chão. 
- Para que precisas do nariz? Aqui – continuou o velho um tanto ressentido de velhas memórias, apontando para uma gárgula que virava o traseiro para norte, aquela mesma gárgula que infligia terror ao salteadores de relicários (Nossa Senhora do Leite sorriu escarninho) – aqui diante de nós está a história de dez séculos de uma velha catedral - e tu vens urinar na parede amuralhada da velha Sé de Braga? Ele bem olhou para mim quando me sentei em cima da lua. Precisei de me sentar na lua. És tu quem me vai impedir? 
Afonso Cadavez chorava com ardor. Viu qualquer coisa no chão diante dele; qualquer coisa adunca que o homem cuspiu no chão com veemência. Constatou que se tratava do seu nariz. 
- Amigo, é o teu nariz! Que pensas fazer em relação a isso? Isso não vai lá nem com mistura de serrim. 
Afonso confrangeu num fragor. 
- O meu precioso nariz! Lorpa! 
- Lorpa? – disse o velho repousando o olhar em Afonso. 
O velho assestou-lhe em cheio com o pé nas costuras. Afonso confrangeu copiosamente. 
- Julgas naturalmente que estás em situação de apontar o dedo a qualquer idiota, mas não passas de um lorpa. Ao mínimo contacto com a realidade, comoves-te como o diabo foge da cruz. És lorpa e covarde. 
- Não é nada – disse o velho repousando o olhar em Afonso Cadavez. - Tu é que estavas a urinar contra a parede da Sé de Braga. Isso não posso consentir. 
Nisto, dois homens acorreram por compadrio do homem. 
«Que se passa? - rumorejaram. É para bater?» 
Entretanto, ali no Rossio levantou-se um tumulto; pessoas agitavam-se em redor dos lutadores. «Porrada!... Porrada!...» Afonso procurava acertar no rosto da criatura, mas dizer que criatura fosse ao certo, ninguém ainda houvera colocado a questão, exceptuando um padre, ali mesmo, àquela hora, vindo da rua do Alcaide em trote precipitado, que se perturbou ao constatar que uma das gárgulas havia sumido do poiso – gárgula que, desde a sua construção, ali estivera como um simples capitel de alvenaria. 
 Os papalvos tão pouco se aperceberam que aquilo diante deles, uma escultura assombrosa com dentes caninos afilados na sua boca profunda, qual Barrabás com ventas poeirentas, fosse precisamente algo ou qualquer coisa de outro mundo. «Porra, o jovem não tem nariz» 
- Idiotas – berrou Afonso Cadavez. - Arrancou-mo este homem. 
Entretanto, os papalvos enviesaram o olhar; questionavam-se. E sussurravam ao ouvido uns dos outros fazendo um sinal à laia de corno. 
— Ele é feito de alvenaria, o monstro – berrava agora. 
Então, tendo para isso arregaçado as saias do hábito negro, o padre repenicou a orelha arrebitada da gárgula e desapareceu numa esquina refundida. Um velhinho magro como um palito e um boné enfiado pela cara ficou varado: 
— Valha-me deus, o padre levou o nosso lutador; com quem vai o rapaz lutar, neste caso? 
Após os papalvos se haverem dispersado um pouco tristonhos, o velho de boné enfiado pela cara olhou a esquina escura onde o padre havia desaparecido, e, tendo para isso amparado a mão mariana pejadas de calos e outras indelicadezas seu queixo, acompanhou os outros. 
 Como então, Afonso Cadavez? Realidade ou mito? Ou uma ambas as coisas. Que é de ti? O teu nariz? Apanha o nariz antes que seja tarde. Nossa Senhora do Leite sorriu escarninho.

sábado, 7 de abril de 2018

A Sogra

It's not funny.

São Gonçalinho entrou em casa dos sogros num recobro de alma; a guitarra dos Rolling Stones, que ele vinha ouvindo no leitor de cassetes, estava em ponto rebuçado. «Mãezinha, chegou o meu Gonçalinho! Olá, amor. «Olá - retribuiu com um beijo terno. 

A sogra embiocou-se; aquelas calças largonas deixavam muito a desejar. «Mariconço - pensou para os seus botões. Gonçalo atirou uma madeixa para o lado, e beijou a face da sogra. Debicou com beijinhos Bourbon, o cão de família, que rodopiou a um sinal, e sentou-se na ponta de uma cadeira, observando de chofre o José Rodrigues dos Santos na telly. «Este José Rodrigues dos Santos é tão erudito. Não acha, Gonçalinho? - atirou a velha para aquele lado. «Sim, de facto é muito carismático.» 

A velha por pouco não atirou com um comentário ainda mais vexante. Mas conteve-se e azedou diante de um Rodrigues dos Santos que atirava com o eterno piscar do olho. «Eheheh - sorriu São Gonçalinho. «O que tem? - perguntou a velha, descrente. 

- Ó Purita - atirou o homem a um canto da mesa de jantar rasgando com uma meticulosidade cândida o naco de pão da boca -, até dá impressão que estás com os azeites. «Eheheh - sorriu o rapaz. 

- Ó mori - acorreu a rapariga vindo da cozinha como que acossada de riso -, queres ver o bolo que eu estou fazer? «Por que ris - sorriu São Gonçalinho. «Hahahah - baliu a rapariga escondendo por instante o rosto -, o bolo está completamente ensopado. 

- Que tentaste fazer; um preto musculado de chocolate? Queres que te ajude? 

- Não acho que vá servir de nada - atirou a velha. 

Nisto o rapaz sentiu uma leve crispação no estômago. Mas não pôde conter-se; largou uma flatulência. Bourbon sorveu aquele aroma quente. A velha Purita embiocou o nariz: «Bourbon, sai daqui. Por amor de Deus. 

«Puxa, julguei que seria o meu fim - pensou São Gonçalinho -, a velha nem notou que fora eu quem se largou.» Cinco minutos depois Gonçalo sentiu a mesma crispação nos intestinos; mas desta vez decidiu ir mais longe. Largou-se desnatradamente. A velha olhou Bourbon sob as lunetas. «Bourbon...» O rapaz sorriu candidamente. Foi então que decidiu largar-se numa flâmula: aquilo soou nas quatro paredes como um sustenido de um fagote. Purita, caída de um sonho, atirou assustada. 

- Foge, Bourbon! Foge que ele mata-te!

quarta-feira, 4 de abril de 2018

23 Horas

23 HORAS

«Foda-se, são 23 horas da noite…»

- Não sei o que faça, meu deus.
- Filho, queres que te barra a cabeça com manteiga, no caso dela não passar na porta?
- Deixa estar, estou a atestar o depósito.

sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

Bom dia pessoas

Bom dia pessoas que acordam para o lado mais agreste da manhã; que escapam em rol para a água fria como quem vence a hora mineral das montanhas; que estranham a plenitude dos quadrantes (Que maluqueira!) directamente anterior aos pássaros de cordel que brindam com a trouxe-mouxe da vida doméstica e soltam nas alturas e se compelem num taco a taco, como criaturas pensantes que são, entre a poalha de concreto que te desarma, que te inflige a vertigem das alturas e a hiponcondria que nada ajuda. Acordei com os pés de fora...


segunda-feira, 1 de janeiro de 2018

Feliz Ano Novo

Bom dia pessoas. Good morning. Bonjour. Dormi como o pássaro no seu ninho depois de uma passagem de ano sem o encanto de outrora. Mas ainda fui capaz de urrar após as doze badaladas, pois que o meu desejo tem febre de alturas. Espero que tenham um Próspero Ano Novo, pejadinho de folia histriónica, o copo a rodar por entre sorrisos enternecidos e um grande afecto através dos olhos - ou uma reacção que parte da mais valente cara de parvo. O doce convívio e amizade. Mas sempre a folia, o abraço e o escaparate, o desapego constante depois de uns copos bem regados. A danceteria; olhos que se encontram de tanto peneirar. Entretanto, o prazer, a lucidez; a alquimia e o amor. O descanso, a esteira, aquele disco que atirar com notas estarrecidas. O convívio; a vida que refulge diante dos olhos como centelhas - e uma imensa vontade de agarrar o rabo das calças da vida. As viagens; a própria viagem à volta do mundo, tão diverso e hodierno, e nós tão contemporâneos de o pertencer. Um próspero Ano Novo com chancela do Cromeleque dos Danados.


O menino

José estugou o passo adiante de Maria. Uma ansiedade estonteante compelia-o para encontrar abrigo. Uma ansiedade ao doudo. Por instantes, vi...